sábado, 27 de dezembro de 2014

Murilo Mendes

O que eu sabia de Murilo Mendes há semanas? Nada. Comprei, então, este livro. Quanta surpresa boa ainda nessa vida, não?



A marcha da história

Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores,

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Poesia é assim.

Para mim poesia (talvez a literatura como um todo) é isso. Simplicidade e beleza.

De Estrela Ruiz Leminski

"parece muito fácil
mudar a mente alheia
fazer reforma agrária
uivar pra lua cheia

parece fácil a beça
distribuir a renda
curtir a natureza
mas a guerra tem pressa

parece fácil pra caramba
dividir teto, casa, cama
se declarar pra quem se ama

se é fácil me diz
mudar pra outro país
ver teu show sem pedir bis
entender o que fiz

parece fácil mas não é
ser homem, ser mulher
entender o que se é"



domingo, 21 de dezembro de 2014

O coração em " A Desumanização"






"Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.
Quando empedernir, esquecido de toda a humanidade da vida, ficará entre as loiças, como inútil souvenir ou peça de mesas para uma festa que nunca acontecerá.
Terei sempre pena dele. Estará como um animal antigo que perdeu a qualidade dos novos dias. Sem visitas. Será apenas a humilhação entristecedora de todos os afetos.
Poderei, nas arrumações, preparando alguma partida, aligeirando os fardos, deixá-lo no lixo para que a natureza o recicle com as suas ganas aturadas de recomeçar tudo. Até lá, a minha coragem assume apenas a evidência de que somos matéria morrendo. Começarei morrendo pelo coração.
Gostarei sempre dele, como se gosta do que está extinto, sejam os dragões, os anjos ou as distâncias. Histórias de coisas que não voltam.
O meu coração sem visitas perderá a memória e, quando nos separarmos de vez, certamente será mais feliz.
Se me perguntarem, direi que nasci sem ele. Jurarei e mentirei sempre.
Talvez, depois de esquecido, sirva de ocarina e possa com ele tocar canções. Um coração por ocarina faria todo o sentido do mundo.
Pudesse esse ser o destino de cada um, amadurecer assim o coração. De percussão a instrumento de sopro. Ensaiar uma melodia até o fim. Ter uma melodia por identidade e deixá-la a alguém que aprendesse. Quando não existíssemos, estaríamos suficientemente no som. Bastaria o som para impedir que a morte fosse tão exagerada. Talvez quem aprendesse a canção pudesse também guardar-nos as paixões. Pousá-las ao pé de si. Dizer: esta ocarina é bonita. A morte seria só bonita. Uma coisa de ouvir, contra o silêncio insuportável".

Páginas 223 e 224. Que texto.


sábado, 6 de dezembro de 2014

Otto e a melhor descrição.

Otto para Fernando (trecho de carta de 23 de julho de 1959):

"Vi outra crônica sua na Manchete, de Veneza. Gostei. Os venezófilos ficarão fulos com a sua irreverência. Eu aplaudo. A praia italiana de que fala o PMC é Pestum. Amanhã tem almoço no Caio, de despedida de nóis. Vou dar muita banana mental. Recebi um bilhete amoroso do Paulo e de outros. Fiquei satisfeito, qualquer prazer me diverte. Estou de um mau humor insuperável, naquele tom de voz incrível. Já não me suporto mais. Vou me expulsar de mim mesmo, me largarei na primeira sarjeta."


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Valter

"As pessoas são tão diferentes. Aprecio muito que o sejam. Fico a pensar se me acharão diferente também. Adoraria que achassem. Ser tudo igual é característica de azulejo na parede e, mesmo assim, há quem misture.

Eu sou a favor de uma meia de cada cor. Adoro cores. A minha mãe diz: organize. Significa que acha que eu baralho demasiado. 

Às vezes, fico horas a arrumar o meu quarto. Cansa, mas gosto do resultado final. Queria muito ter esperança em fadas que mantivessem os trabalhos chatos sempre feitos. Mas isso não acontece. Para ser menos chato, eu canto no trabalho. Chego a ficar rouca, das horas e da falta de afinação. Sou, enquanto cantora, prima das cacatuas. Não me importa. Ainda assim, eu canto. Adoro cantar."