sábado, 31 de outubro de 2015

Aventura na casa atarracada

Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse nada mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado:
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia,
e cimento armado
para o primeiro andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo,
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

sábado, 24 de outubro de 2015

Alice

Uma coisa bonita para este sábado:

a noite
mais longa
dessa vida

no céu
o cometa passa
na terra
meu pensar te abraça

você
irmão
filho
amigo

não está
mas fica
enfim
comigo




quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Fal

Nem vou falar nada. Na página 77:

Você será o fim da vida, tal e qual eu a conheço. A minha vida. E o que virá depois? Eu não sei, você não sabe. "Não há garantias", você diz. Então, não quero. Quero o certo, o cotidiano, o imutável, o previsto, o listado, o milimetricamente programado. Quero o que tenho certeza de que está no armário da cozinha, na terceira gaveta do guarda-roupa, no envelope dentro da pasta. Quero o estável, o sólido, a rocha. Quero um dia depois do outro, consultas marcadas com duas semanas de antecedência, nenhum abalo, nenhuma grande alegria, nenhuma grande dor. Quero o impossível.




sábado, 17 de outubro de 2015

No teu deserto

Eu li e fiquei emocionada.



Páginas 115 e 116:

E tantos anos passaram desde então! A minha espada do mercado de Tamanrasset continua enferrujada, mas não mais do que já estava antes. Os anos passaram por mim, não por ela. Um dia em que tive um grande desgosto, deitei-me para dormir sem saber como seria a minha vida para diante. Quando acordei, olhei-me ao espelho e vi, espantado, que duas grandes rugas me tinham nascido nessa noite, junto aos olhos. Não estavam lá antes de eu me ter deitado na véspera, mas agora estavam, nítidas e verdadeiras, a menos que eu as injetasse de botox e alguém inventasse uma cirurgia contra os desgostos. E habituei-me às rugas, conformei-me com o tempo que passa. Às vezes, lá onde eu moro, fico à noite a olhar as estrelas como as do deserto e oiço o tempo a passar, mas não me angustia mais: eu sei que é justo e que tudo o resto é falso. E às vezes, nesse terraço onde vejo e oiço as estrelas, onde escuto e aceito a ampulheta da minha vida, acendo um lume à maneira do Ali, com os galhos e ramos secos que fui colhendo durante o dia, ao passear pela paisagem. E, às vezes também, quando então percebo que tudo está em paz e faz sentido, falo com a tua estrela, sei que tu me guardas e vigias, que perdoas todos estes anos de silêncio, tão cruéis e irreparáveis ausências, tanto medo, Cláudia, de seguir a tua estrela, a tua luz, em vez de tantas ofuscantes ilusões.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Um pouco de Nelson Rodrigues

Trecho de crônica publicada em O Globo - 9 de abril de 1968.

1 - O perfeito casal exige uma vítima. Tanto faz que seja o marido ou a mulher. Não importa. O que importa é que cada qual viva o seu papel. A vítima terá de comportar-se como vítima, sem discutir a própria função e o próprio destino. Por sua vez, o algoz há de ser eternamente "o algoz". Se os dois observarem essa coerência, a união chegará às bodas de prata, de ouro e continuará no Céu ou no Inferno, sei lá.

2 - De vez em quando, porém, há a catástrofe: a vítima se enfurece ou o algoz se regenera. Rompe-se o equilíbrio conjugal; e nada mais é possível. Não pode sobreviver a união de uma ex-vítima com um ex-algoz.

3 - Eis o que eu queria dizer: como o amor, a amizade também depende de uma vítima. Entre dois amigos há, fatalmente, o não-correspondido. Sim, há um que gosta mais do outro, e cujo sentimento é mais firme, harmonioso e profundo. Por exemplo, a minha amizade com Otto Lara Resende.

4 - Há sempre alguém que me pergunta: - "Você e o Otto são amigos?" Respondo, com risonho descaro: - "Amicíssimos." Ainda ontem, Clarice Lispector fez uma entrevista, comigo, para Manchete. E me dizia a grande artista: - Você, o Otto e o Hélio Pellegrino são muito amigos, não são?" Dei-lhe esta resposta límpida e exata: - "Se são, não sei. Eu sou."


domingo, 11 de outubro de 2015

Cantiga de hoje à noite



Não. Não me peçam gentilezas.
Se penso em flores, céu e campo,
o pensamento espalhado bucólico em recantos de infância,
se pesquiso espantos renascidos de ocultos vãos de memória,

a forma me sai fria, em gelo e sal.
Nos ásperos caminhos de meu tempo
já não encontro passos predestinados:
cirandas confusas em torno de ídolos de pedra
desesperados abraços, desvairados encontros
sem amanhã, sem depois.
Já não consigo amenidades no falar.
As estruturas criadas em cristal são apenas vidro,
vidro partido violentando veias de onde nasce um sangue inerte.

Inútil sangue de meu tempo
Percorrendo escuros caminhos de cansaço.

Por favor, não esperem doçuras de meu canto.
Não esperem doçuras de ninguém mais,
não esperem sequer o canto:
maldito aquele que quiser purezas.
E no entanto, houve um tempo em que eu cantava.
Nos teares antigos de meu peito
rocas de prata entreteciam esperas,
intermináveis rendas de alegria.
Geradas por raízes de terra
uma seiva lenta e calma envivecia os membros.
Ainda assim, o voo pesa.
O impossível voo em meu corpo sem asas.

Peçam-me apenas silêncios. E que no meu escuro claustro
encontre aqueles cantares, encontre a mão de um amigo.
Mas já não creio em canções e os amigos me traíram.
E em traições e guitarras, difícil achar a flor.

13 de abril de 1969.




sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Dicas úteis para uma vida fútil



O melhor livro, o melhor título - do gênio.

Aquele terno branco.

"As observações de Mark Twain também foram publicadas no New York World de 8 de dezembro de 1906. Seu terno de flanela branca, explicou ele, era o "uniforme da Associação Americana de Pureza e Perfeição, da qual sou presidente, secretário, tesoureiro e único sócio nos Estados Unidos".

- Por que você não pergunta o motivo para eu usar uma roupa tão inadequada com a estação? Vou lhe dizer. Descobri que, quando um homem chega à avançada idade de 71 anos como eu, o fato de ver sempre roupas pretas pode ter efeito deprimente. Roupas de cores leves são mais agradáveis aos olhos e animam o espírito. Porém, claro não vou obrigar todo o mundo a usar essas roupas só para me agradar, por isso eu mesmo uso.

- É claro que, antes de um homem chegar à minha idade, o medo de ser criticado impede que ceda à própria vontade. Não tenho esse medo. Sou muito a favor de roupas coloridas. Gosto, por exemplo de ver o traje das mulheres quando vou à ópera. Nada é mais deprimente do que que o sombrio preto que as normas masculinas exigem para ocasiões formais. Um grupo de homens em trajes de noite parece um bando de corvos e transmitem essa sensação.

- O homem mais bem vestido que já vi foi um nativo das Ilhas Sanduíche, que me chamou atenção há trinta anos. Quando queria usar algo especial numa recepção pública ou num feriado, punha óculos. No mais, bastava a roupa que Deus tinha lhe dado.





terça-feira, 6 de outubro de 2015

Esplendorosa borboleta de sangue



todos os monstros têm o teu
nome, de mais ou menos bocas, grandes ou
pequenas milhares de patas, sangue jorrando ou
líquenes desfeitos, todos os monstros têm
o teu nome e por ofício, perseguem-me. entram
por mim no soalheiro mundo dos
homens, usam a minha incúria

eu sou
uma esplendorosa borboleta de sangue. um
ser que voa no coração

e cada monstro virá dizer que me ama e
saberá convencer-me a suportar os seus
tentáculos, a apreciar até os beijos nos
orifícios mucosos por onde expele a
língua e será capaz de me fazer querer o
esbracejar nocturno dos seus gestos

e eu direi o teu nome e nunca me
enganarei.

sábado, 3 de outubro de 2015

Mais Marcelo Rubens Paiva

"O passado é conservado por ele mesmo. Nos segue por toda a vida. Nosso cérebro foi feito para guardar o passado e trazê-lo à tona quando precisamos, para esclarecer uma situação do presente. Se não fosse esse truque do cérebro, acharíamos que o passado continua presente. Enlouqueceríamos. Tem uma válvula que registra o ano em que as coisas aconteceram. Válvula que, quando sonhamos, é aberta.

Mas e quando o presente não faz sentido? Quando ele passa a não existir, vira um furacão de imagens, um vento que impede de enxergar com clareza, é substituído pela memória? Não. Pois, como não precisamos dela, já que não existem questões a serem esclarecidas no presente, a memória também se apaga."

Página 249.