quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Veríssimas

O mestre de sempre.


Burrice - Deus nos livre da burrice alheia, que a nossa é pitoresca

e

Ser superior - Existe um ser superior que dirige nossas vidas, mas ninguém entende como ele passou no psicotécnico.


segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Valter




Trecho final de "A princesa com alma de galinha". 


O rei, sem outra explicação e sem hesitar, sorriu e pediu que toda a gente aplaudisse a princesa herdeira. Havia um milagre só na sua esperança. Era, afinal, apenas isso. Um milagre guardado na esperança. E quem guardava a esperança manisfestava uma enorme inteligência. Quem sabe esperar é dono de um tesouro. A princesa sorriu.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Os dragões não conhecem o paraíso

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada. 

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta da agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande chaga.


"Os ladrões não conhecem o paraíso". Contos. Página 142.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Ziraldo

Livro novo do Ziraldo. Lindo. Lindo.



Menina
quando acha
que tem razão
ou mesmo quando não acha
tem os pezinhos no chão.
"Porque eu nasci assim",
ela afirma, categórica.
Mas até que é divertido
(quando não é com você),
vê-la lutar, com denodo,
por aquilo em que ela crê.
E tem lá sua beleza
saber que a menina é
uma força da natureza
(quando descobre que é).
Até que ela é valente
quando precisa provar
que tem coragem bastante
para derrubar uma rainha
cheia de fúria e maldade que
vive em seus pesadelos.
É bom ter essa coragem
pra na hora de acordar
sonhar que tudo é verdade.

domingo, 18 de setembro de 2016

Poesia de Mia Couto

A adiada enchente

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.

Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.

Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.




segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Voltando com Oliver Sacks

Trecho de Mercúrio (do livro: Gratidão).

W. H. Auden vivia me dizendo que achava que iria viver até os oitenta e então "se mandar" (viveu só até os 67). Lá se vão quarenta anos desde que ele morreu, mas ainda sonho com ele, com meus pais e com ex-pacientes. Todos se foram há muito tempo, mas são amados e importantes na minha vida.

Aos oitenta paira o espectro da demência ou do derrame. Um terço dos meus contemporâneos está morto, e vários outros, com graves problemas mentais ou físicos, vivem presos numa existência trágica e mínima. Aos oitenta as marcas da decadência são demasiado visíveis. Nossas reações são um tanto mais lentas, os nomes nos fogem mais amiúde, e cumpre administrar melhor as energias, mas ainda assim é possível nos sentirmos muitas vezes cheios de vigor e nem um pouco "velhos". Quem sabe, com sorte, eu consiga seguir, mais ou menos intacto, por mais alguns anos e me seja concedida a liberdade para continuar a amar e trabalhar, as duas coisas mais importantes na vida, como garantiu Freud.

Quando chegar a minha hora, espero que eu possa morrer na ativa, como Francis Crick. Quando lhe informaram que seu câncer de cólon tinha voltado, de início ele não disse nada, simplesmente olhou ao longe por um minuto, depois retomou o que vinha pensando. Ao lhe perguntarem sobre seu diagnóstico algumas semanas depois, ele respondeu: "Tudo o que tem um começo deve ter um fim". Morreu aos 88 anos, ainda totalmente comprometido com seu trabalho mais criativo.

Meu pai, que viveu até os 94 anos, costumava dizer que seus oitenta anos tinham sido uma das décadas mais agradáveis de sua vida. Ele sentiu, como começo a sentir, não um encolhimento, e sim uma expansão da vida mental e da perspectiva. Nesta altura já tivemos uma longa experiência de vida, não só da nossa, mas também da de outros. Já vimos triunfos e tragédias, altos e baixos, revoluções e guerras, grandes realizações e profundas ambiguidades também. Já assistimos notáveis teorias ascenderem e acabarem derrubadas por fatos teimosos. Somos mais conscientes da transitoriedade e, talvez, da beleza. Aos oitenta podemos relembrar um vasto panorama e ter um senso claro de história vivida impossível aos mais novos. Posso imaginar, sentir nos ossos, o que é um século, coisa que não podia fazer aos quarenta ou sessenta. Não penso na velhice como uma fase cada vez mais penosa que é preciso suportar e levar o melhor possível, mas como um período de liberdade e tempo descomprometido, sem as infundadas urgências de outrora, livre para explorar o que eu quiser e para amarrar os pensamentos e sentimentos de toda uma vida.

Não vejo a hora de fazer oitenta anos.