terça-feira, 30 de setembro de 2014

Ler pelo não

"Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América."




Ps: fui fazer um teste no what's e mandei este poema lido por mim pra Fal. Ela criou todo um negócio e tá lá minha voz fanha de sinusite no blog dela. Aqui. 

sábado, 27 de setembro de 2014

Cartas

Elaine, Fal e eu trocamos ideias sobre o porquê gostamos desses livros. Cartas entre autores queridos, jornalistas, artistas - que delícia que são. 

Tenho os meus favoritos: do Leminski ao amigo Régis Bonvicino, do Hemingway para a família, do Capote para tanta gente e mais outros lindos. 



Aqui, do Otto Lara Resende para Fernando Sabino, trecho final de uma carta de 20 de maio de 1958 (Otto em Bruxelas, o amigo aqui):

"Como vão os amigos? Estou devendo carta a muita gente, mas ando numa vida doida, dormindo pouco, me agitando como nunca, para baixo e para cima, cheio de probleminhas e gente dependurada em todos os galhos de minha alma. Literatura, esqueci. Parei tudo, estou distraído de mim e de Deus. Às vezes, penso com angústia em tudo isso, mas não vou puxá-la (a angústia) agora. Deixo para quando você vier, pois você vem, não vem?

Como foi o livro do Paulo? O canalha nem ao menos me mandou um exemplar. Recebeu uma carta minha, a milésima, pelo aniversário dele, não deu a menor bola. Procurei visitar-lhe a sogra em Londres, escrevi contando minuciosamente - nada! Idem quanto ao Millôr. A estes dois, não escrevo mais.

E o Castello? Respondi-lhe petulantemente, mas ele não deu mais sinal de vida. Acho que não deve ter gostado, ou então me gozou muito aí, com você. Mas não faz mal. Eu agora não ligo mais e nada e sou um homem destemido, isto é, nada temo, nada, nada! Libertação do medo!

Procurou o Mozart Valente? Nem isso você me diz. Bom, vou parar, senão me queixarei até o fim e são tantas as queixas! Depois dizem que tenho muitos e bons amigos. Uma ova!

Adeus, doutor. Continue me intrigando, mancomunado com o Pedro Gomes. Mas, por favor, não me atribua frases pejorativas para com São João Del Rei. Qualquer pessoa que me conhece sabe que eu sou incapaz de depreciar a minha nobre e leal São João del Rei, que não troco nem por todas as capitais do mundo. Lá ficou um menino que não existe em nenhuma metrópole do mundo. E esse menino sou eu. Respeite esse menino, respeite a cidade desse menino. Não mexa com o S. João.

Abraço sempre amigo do velho e caluniado,

Otto."


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Riobaldo e Diadorim

"Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos - vislumbre meu - que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era beleza e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança."


O entender da gente por si não alcança. Pois é.

domingo, 21 de setembro de 2014

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres



"Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."

Página 73.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A cólica alheia

Trecho final de "Quem for brasileiro que me siga". Publicada em O Globo no dia 11 de maio de 1968:

"Dizia Machado de Assis, erradamente: - suporta-se com paciência a cólica alheia. Mentira. Nem sentimos as nossas. Está aí o Nordeste. É uma boa cólica. Nós a ignoramos. Há também o Amazonas. Outra cólica razoabilíssima. Nem a percebemos. E há a nossa mortalidade infantil. Outra e considerável cólica. Não nos preocupa. Mas gememos pelo Vietnã, por Cuba, por todos os povos subdesenvolvidos. É a cólica alheia que torce e retorce as nossas entranhas.".

Nelson tem sempre razão.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Mario Quintana

Que delícia ir lendo um punhado de textos do Mario Quintana. Você lê um pouco, dá uma pausa, volta depois... pena que acaba.



Drops variados do livro:


"Com o tempo não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros."

* * *

"O mais difícil, mesmo, é a arte de desler."

* * * 

"Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitações às folhas, anseios ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens."


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ou o poema contínuo

É um sinal de felicidade quando você lê um poema que nunca leu antes e dá um sorriso (no meu caso) e ainda fala alto: "que coisa linda". Vejam:


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - 
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega,
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.




Herberto Helder, páginas 13 e 14 do livro acima.



terça-feira, 9 de setembro de 2014

O pintassilgo

Todo mundo falando deste livro desde o lançamento, no ano passado. Ganhou o Pulitzer, ganhou os paranauê todos. Eu esperava este livro desde sempre, como todo mundo que espera um livro da Donna Tartt (saiba mais aqui). Li em novembro do ano passado. Que coisa fantástica. Leiam. Não se assustem com o tamanho (o meu, em inglês, tem 771 páginas).  Digo isso pois ele acaba de ser traduzido e tia Andréa quer que todo mundo leia. De nada, amiguinhos. 




Aqui, um pedaço da página 353. É muito, muito mais do que este trechinho sentimental, mas tá valendo. E o inglês é lindo e dá pra todo mundo entender, sem mimimi fazendo o favor:



"But I didn't. And, in the truth, it was maybe better that I didn't - I say that now, though it was something I regretted bitterly for a while. More than anything I was relieved that in my unfamiliar babbling-and-wanting-to-talk state I'd stopped myself from blurting the thing on the edge of my tongue, the thing I'd never said, even though it was something we both knew well enough without me saying it out loud to him in the street - which was, of course, I love you."

domingo, 7 de setembro de 2014

Sonhei que a neve fervia.

Eu converso com ela há anos pelo computador. Anos mesmo. A gente se encontrou ao vivo depois de uns 6 ou 7 anos de íntima amizade. Nunca mais nos separamos. Trabalhamos juntas, construímos relações, conhecemos juntas tantas pessoas. Alguns amigos dela são hoje meus, alguns meus são dela. Ela vem aqui. Eu vou lá ficar com Baco e com Maliu. E todos os dias a gente se fala. E sabe onde a outra está e compartilha os tombos. E pequenas felicidades porque a gente ri bastante da vida e da nossa desgracinha de cada dia. E todos têm que ler este livro. Eu chorei, minha mãe queria conhecê-la de tão profundamente emotiva que ficou. E me emociono todos os dias, quando pego para ler um trechinho.



Da página 163:

"Não quero escrever os dias, os meses, as gerações que vão passando, embora adore escritores que o façam.


Eu quero o segundo.



O turning point, ou não, mas aquele momento.



Aquela gota, aquele drops de tempo, aqueles momentinhos, que juntos, fazem da sua vida isso que ela é, fazem de você isso que você é.



Porque, ao fim e ao cabo, é isso que somos todos. Momentos, segundos, gestos pequenos, pensamentos minúsculos, todos bem costuradinhos e macerados. É sobre isso, meu amigo, que eu quero falar."


Eu também. Eu também. Fal está lá no drops e eu sempre aqui.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Caio em "Escuta:"


"Escuta:
foram muitos os momentos
em que te pensei em mim
não sei se foram bons
maus infâncias temores
mas sei que foram.

Ninguém me tira
a certeza de ter te habitado.

Escuta:
não sei escrever poemas
quando estou dentro dum poema
vivo e sem palavras
mas se penso em te dizer
aqui agora assim
forço rimas formas talvez mortas
porque não me esquivo

Não compreendo nada.
Estou perdido neste apartamento desconhecido. Estou sozinho nesta sala com Villa-Lobos tocando, e pouco sei de mim, de ti. Escrevo para não sentir medo, ainda que não seja bom o que escrevo, ainda que não haja coerência no que sou agora. Não me importa a coerência. Falo um poema em voz alta, apenas para ouvir minha voz. Mas no meio do poema descubro verdades que eu te diria."

1970

De: "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu". Página 33.


Obs - para mim Caio é o cronista do dia a dia. O cronista de jornal que tanta falta faz. Sempre foi. E ele tem algumas poesias. Não é meu poeta favorito. Mas volto à questão de sempre - se adoro um autor e ele já morreu, leio tudo. E se alguma coisa perdida é encontrada depois da morte (como este livro do Caio publicado em 2012), eu corro atrás. Tomara que achem um livro de poemas do Nelson Rodrigues, do Mark Twain, ou uma meia-dúzia de romances do Walt Whitman.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A era do ressentimento




Leiam este livro pra gente parar com o mimimi. Pra sempre. Não tem coisa mais chata, sério. Como diz o Pondé, daqui uns anos nossos tempos não serão conhecidos como o do ipad, iphone ou sei lá mais o quê. Mas sim, como "a era do ressentimento". Vejam só:



"É comum nos referirmos às pessoas como coitadas porque têm de enfrentar a vida. Algo que, antes, era considerado óbvio - a vida não tem garantias -, hoje se tornou um erro cósmico. Esse equívoco se evidencia de forma mais gritante no olhar que muita gente tem sobre as contingências da vida social e econômica. 

Criticamos o mundo como se ele fosse responsável por sobrevivermos ou não. Em casos como esses é que o ressentimento se torna mais evidente: a sociedade e as pessoas devem ser responsabilizadas por escolhas individuais. Se me endivido, a culpa é do banco. Se não tenho emprego, a culpa é da sociedade que me obrigada a trabalhar. A questão é: quem foi o desgraçado que inventou essa história de que devemos amadurecer e enfrentar o fato de que não há garantias para nada? Por que esses ressentidos acham que a sociedade deve nos dar tudo e com isso fazer de nós uns retardados mentais em termos de moral? 

A necessidade de que a vida seja garantida atinge níveis metafísicos desde sempre: este é o núcleo de nosso desejo metafísico religioso, a saber, que algo ou alguém garanta nossa sobrevida, mesmo depois da morte. Morto Deus (pelo menos tendo Ele concorrentes mais próximos, como a vida secular, científica e racionalizada), essa forma de ressentimento se escondeu nas camadas mais medíocres da existência: assumiu a forma de uma petição contínua para que eu seja uma eterna criança a ser cuidada. 

Se Freud dizia que amadurecer é aceitar uma orfandade, o amadurecimento passou a ser considerado um modo de opressão. Coitados de todos nós, que somos obrigados a suportar essa ladainha daqueles que não conseguem compreender o que, desde a tragédia grega, se sabe: a vida nunca teve garantias. Também não acho isso agradável, mas, talvez como pensava o escocês Adam Smith, a autonomia seja a escolha moral possível diante do simples aniquilamento de nossa heroica humanidade abandonada na face da Terra."

É isso.