quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Opus 9 número 2

"XII
não não me deem opiniões sobre mim mesmo
não marquem encontros sem aparecer
por favor por favor não me enlouqueça
não me obriguem a preencher impostos de renda
não me peçam para trazer amanhã se falta o número do cê gê cê
nem me exijam fotografia dois por dois ou três por quatro
igual a essa
de onde você me olha com olhos de quem já olhou de cima dos andes peruanos
e eu nunca fui lá

XIII
sempre achei
que há um momento na vida
em que a gente precisa respirar fundo levantar
e imediatamente
fazer um café bem forte
(não só fazer
tomar, é claro)
há quem diga que a maioria das pessoas está três uísques abaixo
eu prefiro achar que a mesma maioria está um café a menos
de preferência bem forte muito preto e sem açúcar
se é que entende
o que quero dizer
se é que me entende
porque se não entende
não há papo
nunca houve
nem haverá."


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Mudanças

Página 286:


"Meus pais e também minha irmã me acusam agora de ter traído a família ao interromper meus estudos. De fato, talvez tenham mais razão do que eles mesmos pensam, porque a verdade é que os traí ainda muito antes de ter interrompido os estudos. Eu os traí desde que era um menino e sonhava que tinha outros pais. Os que estão dispostos a mudar, os que têm a força para mudar, sempre serão vistos como traidores pelos que não são capazes de qualquer mudança, que têm um medo mortal de mudanças, não entendem o que é mudança e abominam toda mudança."



domingo, 25 de janeiro de 2015

O gênio

"A mais perfeita polidez é apenas um belo edifício feito, do chão ao teto, de graciosas e douradas formas de caridosas e generosas mentiras.

A etiqueta exige que admiremos a raça humana."


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O paraíso são os outros

"Mães, pais, filhos, outra família e amigos, todas as pessoas são a felicidade de alguém, porque a solidão é uma perda de sentido que faz pouca coisa valer a pena.

Na solidão, vale só a pena tentar encontrar alguém. O resto é tristeza. A tristeza a gente respeita e deita fora. A tristeza a gente respeita e, na primeira oportunidade, deita fora. É como algo descartável. Precisamos usar mas não é bom ficar guardada."

Valter Hugo Mãe "O Paraíso são os outros". 

domingo, 18 de janeiro de 2015

Deus é Naja

Crônica inteira (como estou boazinha e paciente hoje) do Caio, publicada em 15 de julho de 1986 em "O Estado de São Paulo". Está em "Pequenas Epifanias".



Estás desempregado? Teu amor sumiu?
Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.

Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele - humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parece, suspirou bem fundo e soltou esta: - "Ai meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." - Descemos o elevador rindo feito hienas.

Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé num futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: - "Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque vai estar no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima é a Franca com a Haddock Lobo, que tem aquela descidona), você olha para a esquina de cima. E lá está - maravilha! - parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando pelo asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: - "Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor de barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida / A mocidade está perdida / Mas a vida não se perdeu" - ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além de mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema - Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou o Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece - como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma linda e fatal jamanta. A mil por hora."















quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Um pouquinho de diversão

"It is Monday morning, six weeks after my wife and I learned that she is pregnant with our first child, and I am stopped at a traffic light. The kid doesn't have a chance. It's a trick. I know this God; I know how He works. The baby will me miscarried, or die during childbirth, or my wife will die during childbirth, or they'll both die during childbirth, or neither of them will die and I'll think I'm in the clear, and then on the drive home from the hospital, we'll collide head-on with a drunk driver and they'll both die later, my wife and child, in the emergency room just down the hall from the room where only minutes ago we stood so happy and alive and full of promise.

That would be so God.

The teachers from my youth are gone, the parents old and mostly estranged. The man they told me about, though - he's still around. I can't shake him. I read Spinoza, I read Nietzche. I read National Lampoon. Nothing helps. I live with Him every day, and behold, He is still angry still vengeful still - eternally - pissed off.

- Man plans, my parents said, - and God laughs.

- When you least expect it, my teachers warned, - expect it."


sábado, 10 de janeiro de 2015

Amós Oz

Judas, página 157:

"Eu, meu caro, não acredito no amor de todos por todos. A quantidade de amor é muito reduzida. Um homem pode amar cinco homens e mulheres, talvez dez, às vezes até quinze. E mesmo assim, só raramente. Mas se vem um homem e me declara que ele ama todo o Terceiro Mundo, ou que ama a América latina, ou que ama o sexo feminino, isso não é amor, mas pura fraseologia. Ditos da boca para fora. Palavras de ordem. Não nascemos para amar mais do que um punhado de pessoas. O amor é um evento íntimo, estranho e cheio de contradições, pois mais de uma vez amamos alguém por amor a nós mesmos, por egoísmo, por cupidez, por desejo físico, por vontade de dominar o amado e subjugá-lo, ou, ao contrário, devido a uma espécie de desejo de ser dominado pelo objeto do nosso amor, e geralmente o amor se parece muito com o ódio e é mais próximo dele do que imagina a maioria das pessoas.

Veja, por exemplo, que quando você ama alguém ou odeia alguém, em ambos os casos você está a todo instante ansioso por saber onde ele está, com quem está neste momento, se está ou não está bem, o que está fazendo, no que está pensando, quais são seus temores. O coração é falso como ninguém, ele é incorrigível; quem poderá conhecê-lo? Assim falou o profeta Jeremias. Thomas Mann escreveu em algum lugar que o ódio não é senão o amor a que se acrescentou o sinal de subtração da aritmética. A medida do ciúme é a prova de que o amor se parece com o ódio, pois no ciúme se mesclam o amor e o ódio. No Cântico dos Cânticos, no mesmo versículo, nos é dito que forte como a morte é o amor, poderoso como o inferno é o ciúme."




quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Nelson

Início de crônica publicada em "O Globo" no dia 20 de janeiro de 1968.

"Em recente capítulo, falei do Palhares, que é um dos mais límpidos e fascinantes canalhas da cidade. (Sim, Palhares, 'o que não respeita nem cunhadas'.) Todos os autores têm seus personagens obsessivos, e confesso que o Palhares é uma das minhas fixações. Sempre que posso, eu o cito, e não sem uma quase imperceptível simpatia. Dirá alguém - 'Mas por que essa promoção de uma canalha confesso e proclamado?'

Sou um memorialista. ('Tudo é memória', disse não sei quem.) E, por todas as esquinas, e botecos, e salas, e retretas da memória, há canalhas em flor. Eles nos atropelam e nós os atropelamos."


domingo, 4 de janeiro de 2015

Ahhhh as cartas....

De Otto Lara Resende para Fernando Sabino.

Carta escrita em Belo Horizonte, em 19 de janeiro de 1944.

"É o diabo haver sempre gente disposta ao cinismo de ter vinte anos. E é impiedade carregarem a gente assim contra a vontade para não sei onde, para a nostalgia dos 43 anos. Mas eu vou fazer 23, pílulas! E a vida não se limita ainda pela morte porque há caminhos que talvez seja preciso recusar. De qualquer maneira, à nossa revelia, tudo vai se imobilizando no granito dos compromissos e os amigos imperceptivelmente começam a usar chapéu-coco e já não admitem que lhes peguem pelo braço sem finalidade, apenas para 'puxar-angústia' ou para sobrenadar no balanço gostoso da conversa mole. Imperceptivelmente algumas coisas vão sendo surrupiadas, o vocabulário diminui e nem todas as palavras se dizem. Porque já não ficam bem. Talvez 23 anos seja uma idade. Mas meu coração é um passeio público."


quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Com o preferido

Começo o ano com um dos favoritos, com um dos trechos que mais emociona. E como disse Paulo Mendes da Rocha (o arquiteto mesmo, falando sobre o Grande Sertão: essa obra é uma universidade toda). 

Eu dizendo que  Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim - nu de tudo. E ela disse:
- "A Deus dada. Pobrezinha..."
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuaia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos pra trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura.. E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
- "Meu amor!.."
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.


Páginas 530 e 531.