terça-feira, 31 de maio de 2016

Fanatismo Comparado




"Eu chamei a mim mesmo de um especialista em fanatismo comparado. Não é uma piada. Se vocês alguma vez ouvirem falar de uma escola ou universidade que crie um departamento de fanatismo comparado, já estou pleitando um lugar como professor. Como um ex-hierosolimita, como um fanático recuperado, sinto que sou totalmente qualificado para esse emprego. Talvez já seja tempo de toda escola, toda universidade, manter pelo menos alguns cursos de fanatismo comparado, porque ele está em toda parte. 

Não me refiro somente às manifestações óbvias de fundamentalismo e intransigência. Não me refiro apenas a esses fanáticos óbvios, os que vemos na televisão, em lugares onde multidões histéricas agitam os punhos na direção das câmeras enquanto gritam frases de efeito em línguas que não entendemos. Não, o fanatismo está em quase toda parte, e suas formas mais tranquilas, mais civilizadas estão presentes ao nosso redor e talvez também dentro de nós mesmos. Conheço antitabagistas que queimariam você vivo por acender um cigarro perto deles! Conheço vegetarianos que comeriam você vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns deles meus colegas no Movimento Israelense pela Paz, que gostariam de dar um tiro na minha cabeça só porque eu defendo uma estratégia um pouco diferente de como chegar à paz com os palestinos. Com isso não estou dizendo, é claro, que qualquer um que erga a voz contra qualquer coisa seja um fanático. Certamente não estou sugerindo que alguém com opiniões sólidas seja um fanático. Digo que a semente do fanatismo reside sempre numa autojustificativa sem concessões, uma praga com muitos séculos de existência."

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Cantiga para ninar insones

Quieta, carência minha:
não pinceles assim, em ouro,
o que no barro é feito. Não
desvendes metáforas complexas
onde o verbo é quase sempre raso
e pouco. Não, não te atices
assim, toda a fim, outra vez,
de elaborar torturas acetinadas
sobre mesquinharias de algodão.

Não te bastou, então, toda essa estrada?

Quieta, quieta: silencia.
Como as tevês antigas, disciplinada,
procura ver em preto, em branco,
em calmaria. Não assim, despudorada,
policrômica, out-dooresca. Respira,
respira fundo, conta até dez.
Não telefone. Não fantasia.

Sossega. Chega de enganos.

Recolhe ardores indiscriminados,
os arrebatamentos, controla.
Controla-te, por favor, carência minha,
pois urge sublimar a ânsia do sublime.
Tenta, tenta. Ou toma um mogadom,
um valium, trinta miligramas (e três,
se for preciso). E dorme, dorme
bruta, dorme profundamente, dorme

sem sonho algum
enquanto chove dentro e fora a chuva fria

Amanhã tem mais.

Maio de 1982.




sábado, 21 de maio de 2016

Bom dia para nascer

Trecho de crônica de 18 de agosto de 1991

Desamarraram o bode

Nada como um dia após o outro. Enfim começaram a tirar o bode de nosso casebre, ainda que aos poucos, em suaves prestações mensais. Ando com uma inclinação zoológica, que nada tem a ver com o modismo ecológico. Tampouco é aborrecimento com a natureza humana. Sou um temperamento indulgente, talvez porque precise de indulgência. De misericórdia, sim. A ser rigoroso, procuro ser comigo mesmo. Como lá dizia o outro, moral para vigiar, basta a minha. O que já me dá muito trabalho e pouco sucesso.

O bicho do dia para mim é o bode. Não o expiatório, que purga a culpa de todos. Mas sim aquele bode da anedota judaica. O pobre-diabo foi se queixar ao rabino. Morava numa lata de sardinha apertada e sem conforto. Pior do que buraco de favela. Só não era pior do que quarto de empregada doméstica em apartamento novinho em folha. E tinha a obrigação debaixo do mesmo teto. Filha, filho, afilhado, até sogra. Vocês sabem: o rabino mandou botar um bode no cubículo.

Passado um mês, tirasse o bode e veria o conforto se instalar em casa. Bode tem vários sentidos. 


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Poema do Caio

16 de dezembro de 1980

Amor não foi, mas invenção
pois te queria de ouro
enquanto eras de barro, águas,
tintura fria, verniz.

De ouro fui eu, o meu invento
em diamantes, rubis, águas-marinhas
engastadas no meu corpo
que nunca foi tão belo. E tão inútil.

Não sei se foi o tempo,
o vento norte, o sol impiedoso dos verões
que pouca a pouco te partiu em cacos

A chuva te desfez. Restou lama.
De mim, um brilho falso. Imitação.
Quinquilharias.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Como curar um fanático

Trecho de palestra de 2002.

Há muitos anos, quando eu ainda era criança, minha sábia avó me explicou em palavras muito simples a diferença entre um judeu e um cristão - não entre um judeu e um muçulmano, mas entre um judeu e um cristão: "Veja só", ela disse, "os cristãos acreditam que o Messias já esteve uma vez aqui e certamente voltará um dia. Os judeus afirmam que o Messias ainda está por vir. Por causa disso, houve tanta raiva, perseguição, derramamento de sangue, ódio... Por quê?". Ela disse: "Por que cada um não pode simplesmente esperar para ver? Se o Messias chegar dizendo: 'Olá, é um prazer revê-los', os judeus vão ter de admitir e reconhecer o fato. Se, por outro lado, o Messias chegar dizendo: 'Como vão, é um prazer conhecê-los', todo o mundo cristão terá de se desculpar com os judeus. Entre o agora e o então",  disse minha erudita avó, "simplesmente viva e deixe viver." Ela era definitivamente imune ao fanatismo. Sabia o segredo de viver em situações em aberto, com conflitos não resolvidos, com a alteridade de outras pessoas. 


domingo, 15 de maio de 2016

Pronomes

Antes de apresentar o Carlinhos para a turma, Carolina pediu:

- Me faz um favor?
- O quê?
- Você não vai ficar chateado?
- O que é?
- Não fala tão certo?
- Como assim?
- Você fala certo demais. Fica esquisito.
- Por quê?
- É que a turma repara. Sei lá, parece...
- Soberba?
- Olha aí, "soberba". Se você falar "soberba" ninguém vai saber o que é. Não fala "soberba". Nem "todavia". Nem "outrossim". E cuidado com os pronomes?
- Os pronomes? Não posso usá-los corretamente?
- Está vendo? Usar eles! Usar eles!

O Carlinhos ficou tão confuso que, junto com a turma, não falou nem certo nem errado. Não falou nada. Até que comentaram:

- Ô, Carol, teu namorado é mudo?

Ele ia dizer "Não, é que, falando, sentir-me-ia vexado", mas se conteve a tempo. Depois, quando estavam sozinhos, a Carolina agradeceu, com aquela voz que ele gostava.

- Comigo você pode botar os pronomes onde quiser, Carlinhos.

Aquela voz de cobertura de caramelo.


quarta-feira, 11 de maio de 2016

Contos de cães e maus lobos

Trecho do conto "As mais belas coisas do mundo".

Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pensei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais, a cara das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chaminés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor.

Pasmei diante do seu conceito de beleza.

Ele incluía os  modos de ser, esses ingredientes complexos que compõem a receita do carácter ou da personalidade, a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos tudo. 

Convenci-me de que as coisas mais belas do mundo se punham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que nos enganavam, devido à vergonha ou à matreirice. O que sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser como colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou não se roube, para que não se gaste ou não se canse.

A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento, aquilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas, intuitivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é como fazer.

Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita não está preparado para ser melhor do que já é.  Até para ver a realidade é importante acreditar. A minha mãe disse que eu virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso sonhar acordado. Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Mais um Leminski

Amo abrir o(s) livro(s) e descobrir um poema que não lembrava. E colocar o bonito aqui.

Assim:

DIVERSONAGENS SUSPERSAS

Meu verso, temo, vem do berço.
Não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície
onde o verbo vem ser mais?

Não sirvo pra observar.
Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

Onde estará meu verso?
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.


sábado, 7 de maio de 2016

Paraísos de Papel

Hoje nossa página faz 4 meses, com mais de 3000 likes e com um vídeo lindo de dicas.

Aproveitem!


terça-feira, 3 de maio de 2016

Uma coisa maravilhosa do Veríssimo

Uma das minhas crônicas favoritas (são dezenas, mas quem está contando?)

Mike Maguí

O Paulo e a Dé tinham convidado a Lana e o Antônio para jantarem na casa deles e depois assistirem ao que o Paulo chamara de "um pornozinho" no videocassete. O Antônio foi contrafeito, embora a Lana não visse nada de mal.
- Não vejo nada de mal, ué.
- Pô, Lã!
- Qual é o problema?
- Sei lá - dissera o Antônio, que não queria estragar o prazer de ninguém, mas puxa!
Mal conheciam o Paulo e a Dé. Acabara concordando mas com uma condição.
- Se for alguma coisa com anão e cabrito, eu levanto e vou embora!

Quando colocou o cassete no aparelho o Paulo piscou um olho e disse: "Este é com o Mike Maguí".
- Ah, o Mike Maguí - disse o Antônio, como se soubesse quem era.
- Ele é bom, é? - quis saber a Lana.
- Espera só - disse o Paulo.
E a Dé reforçou:
- Espera só.

No carro, voltando para casa, a Lana estava silenciosa. O Antônio já falara mal da comida ("Strogonoff, com esse calor), falara mal do Paulo ("Recorta artigo do Delfim, você viu?"), falara mal até do cachorro ("Antipático"), e a Lana nada, pensativa. Finalmente o Antônio disse:
- E o Mike Maguí, hein?
E a Lana:
- Que coisa, né?
O Antônio olhou para a mulher com o rabo de olho.
- Você sabe que aquilo pode ser truque, não sabe?
- Como, truque?
- Truque. Maquiagem. De borracha.
- Acho que não era não.
- E o cara é um imbecil. Vamos e venhamos. Tem cara de abobado. Você não achou??
- Até que não.
- Por amor de Deus, Lã. Já imaginou um cara desses... um cara desses...
- O quê?
O Antônio procurava o que dizer. Finalmente disse:
- Lendo Rilke?
A Lana fez um ruído de desdém.
- Não sei o que ler Rilke adiantou para certas pessoas...
Eu sabia que nós não deveríamos ter ido, pensou o Antônio.


domingo, 1 de maio de 2016

Paraísos de papel

Tem programinha novo. Tem meu livro lindo de criancinha.