terça-feira, 29 de setembro de 2015

Sintonia para pressa e presságio

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo de quem cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.



Obs: ainda bem que sempre acho um Leminski novo pra por aqui.

domingo, 27 de setembro de 2015

Ou o poema contínuo

A manhã começa a bater no meu poema.
As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
o rodopio das rosáceas do meu
poema batido pela revelação das coisas.
Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
pelo sangue.
Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
rapidamente transfigurada.
Batem nas portas das palavras,
sobem as escadas desta intimidade.
É como uma casa, é como os pés e as mãos
das pessoas invasoras e quentes.

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
deitado de costas, com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu quieto pensamento.
Batem, sobem, abrem, fecham,
gritam à volta da minha carne que é complicada carne
do poema.

Um inspiração fende lírios na minha testa,
fende-se ao meio
como os raios fendem as direitas taças de pedra.
Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem levitante,
as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que rola e a morte
e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
à beira do povo que até mim separa os espinhos das formas
e traz sua pureza aguda e legítima.
- Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de ouro ou peixes delicados de música fria.

- Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

O poema dói-me, faz-me.
O povo traz coisas para a sua casa
do meu poema.
Eu acordo e grito, bato com os martelos
dos dias da minha morte
a matéria secreta de que é feito o poema.

- A manhã começa a colocar o poema na parte
mais límpida da vida. E o povo canta-o
enquanto crescem os campos levantados
ao cume das seivas.
A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
do mundo.
















quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Tu e eu



Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só crescer
até dar pé.
Eu não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa.
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy.
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobão
eu sou mais albinônico.
Tu, fão.
Eu, fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico.
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu, piniquim.
Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou penitente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu, multo.
Eu, carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e outro insano.
Tu, cano.
Eu, clidiano.

Dizes na cara
o que tem vem à cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu, tano.
Eu, femismo.










terça-feira, 22 de setembro de 2015

A Bíblia do Caos - Millôr

Em "Beleza":

Lição de coisas: A estética súbita de uma flor, de uma folha, a tranquila emoção da luz do amanhecer, o esplendor de qualquer coisa ou de alguma coisa, não são um projeto, não têm objetivo, não almejam o futuro ou a eternidade. Beleza (plenitude) é hiperqualidade natural, fim em si mesmo, supérfluo exibido e usufruído sem quê nem para quê. Nem pensar em utilidade, queridinha. O que eu fiz eu fiz porque sou mesmo assim, não tem que agradecer. Agora vira pra lá e dorme.




sábado, 19 de setembro de 2015

Estrela Ruiz Leminski

"se em cada pé tem um tropeço
o meu passado pelo avesso
cada tempo o seu invento
cada passo o seu intento
eu faço desse parto, o meu rastro
o meu próprio alimento

de que adiantam os meus olhos
enxergando o que não aguento
de que adianta mais uma dose
qualquer coisa pro meu alento
eu faço de qualquer parte, a minha arte
o meu momento

se piso em falso, escondo o jogo
se troco as bolas, invento outro
se pago pato, eu peço o troco
se pagam pouco, eu complemento
se é foda começar de novo
pelo menos eu tento."


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cantiga de amor idiota



Para mim doeu. Só de ler.

"Um punhado de sal
em plena ferida aberta
ou
como um sorvete gelado no nervo
exposto
do dente
ou
que nem uma brasa viva
fechada
dentro da mão
ou
igual arame farpado
no branco escuro do olho
ou
um prego no pé descalço
ou
um soco na cara nua
ou
punhal entrando na tripa

assim te ouvi dizer
- não."

04 de julho de 1977.


domingo, 13 de setembro de 2015

Mais "Ainda estou aqui"

Da página 34:

"Meu filho nasceu às 8h45. Me lembro e me lembrarei de cada segundo do seu parto. Me lembro de ver sua cabecinha saindo. De ele balançar os bracinhos na luz. De eu chorar sem sair lágrimas. Ou de sair lágrimas sem eu chorar. Duvido que me esquecerei de algum detalhe desse dia milagroso. Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono. Emocionar-se é passar de um estado para o outro. Você vê um quadro hoje. Vê o quadro de novo daqui a dez anos, o revê daqui vinte, trinta, quarenta... É o mesmo quadro com a mesma moldura, na mesma parede do mesmo museu, com a mesma luz, é você, mas cada vez será visto de outra forma. Cada vez ele nos conta uma história. O quadro não mudou. Já nós..."


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Otto e Fernando de novo

Trecho de carta do Otto Lara Resende para Fernando Sabino. "O Rio é tão longe".



"Lisboa, 6 de setembro de 1968.


São suas horas e picos da manhã, volto do cassino do Estoril, onde arrisquei uns escudos na roleta, ganhei quatro plenos de saída, parei, perdi 320 escudos na maquininha diabólica e devoradora, troquei as fichas e caí fora, Helena me esperava no salão lá fora, com a Mônica e a Andréa. Copo de leite pra variar (acho que sou o único sujeito em Portugal que toma leite de madrugada), cafezinho e cigarros às pampas, preciso fumar menos e trabalhar mais. Como é bom trabalhar, mesmo bestamente, estou cada vez mais convencido de que quem não cumpre com o seu dever cotidiano (os mais bestas: ir ao dentista, cortar o cabelo, fazer  barba atrasada, pagar a conta do alfaiate, comprar goma arábica) merece ser condecorado, que é um pobre-diabo infeliz, sem a alegria moral remuneradora de quem enche o seu dia na bigorna humilde dos deverezinhos de todo-santo-dia. Eu já perdi a esperança de me recuperar. Sou um caso perdido."


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Diadorim e Riobaldo sempre

"Pois então: o meu nome, verdadeiro é Diadorim... Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo..."

Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos - logo eu disse:

-"Diadorim... Diadorim!" - com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam. Diadorim. Sol-se-pôr. 



terça-feira, 1 de setembro de 2015

A desumanização

"Levava as mãos às minhas, como se fosse velha, e pedia-me: ajuda o pai, não deixes de comer, lê os livros das viagens, namora um homem lavado, pede por mim à Islândia, pede a deus, diz-lhe que componha o órgão da igreja, faz carinhos aos patos, não lhes parta os ovos, celebra sempre a festa do nosso aniversário, ainda que estejas sozinha, sem ninguém, aprende as coisas da escola que não vou aprender, toma conta das respostas para as minhas mensagens, foge do Einar, já sabes, aprende o arrependimento, ri-te muito. Se alguma das minhas garrafas vier devolvida, atira outra vez. Ninguém precisa de saber que já não estou aqui. Se os mortos forem heróis, vou realizar os teus sonhos. Vou ficar a olhar por ti, mesmo que não me consigas ver. Eu acho que os mortos sabem as coisas todas da escola. Não achas. Não tenhas medo. Não é preciso termos tanto medo, só um bocadinho."



Se tem algo mais bonito, eu não sei.