segunda-feira, 29 de junho de 2015

Diários de Adão e Eva



Segunda-feira, meio-dia.

Se houver alguma coisa no planeta em que ela não esteja interessada, não consigo lembrar o que possa ser. Há animas aos quais sou indiferente, mas ela não. Não faz discriminação, ela aceita todos; acha que todos são tesouros, cada novo animal é bem-vindo.

Quando o gigantesco brontossauro veio caminhando devagar até a clareira, ela o considerou uma bela aquisição para a propriedade. Eu o considerei uma calamidade. É um bom exemplo da falta de harmonia em nossa visão das coisas. Ela acreditava que conseguiria domesticá-lo; eu queria considerá-lo apenas como um novo bem da propriedade, e me mudar de lá. Ela achava que poderia amansá-lo com treinamento e fazer dele um animal doméstico; eu disse que um bichinho de mais de seis metros de altura e um pouco mais de vinte e cinco metros de comprimento não seria apropriado num lugar assim; mesmo com a melhor das intenções, e sem querer mal a ninguém, ele poderia se sentar sobre a casa e esmagá-la, porque só de observar os olhos dele dá para ver que é meio distraído. Mesmo assim o coração dela estava inclinado a ficar com aquele monstro e ela não estava disposta a abrir mão dele. Ela achou que poderíamos começar um laticínio com ele, queria que eu a ajudasse a tirar leite; mas eu não ia fazer isso, era muito arriscado. O sexo do animal não parecia ser o correto, e além do mais não tínhamos uma escada. Então ela quis montá-lo e apreciar o cenário. Uns dez a doze metros só de cauda arrastando pelo chão, como uma árvore caída, e ela achava que podia subir nele; estava errada, claro; quando chegou na parte mais íngreme, que era bem lisa, escorregou, e teria se machucado não fosse por mim.

Estaria ela satisfeita agora? Não. Nada nunca a satisfaz, exceto provas concludentes, teorias não testadas estão fora de questão, ela não as aceita. Ela já nasceu imbuída do espírito científico. É o certo, reconheço; me atrai, sinto a sua influência, e se ficasse com ela acho que investigaria também Bom ela tinha mais uma teoria sobre esse colosso: achava que se conseguíssemos domesticá-lo e torná-lo dócil poderíamos colocá-lo no meio do rio e utilizá-lo como ponte. A verdade é que ele já era bem manso - pelo menos no que lhe dizia respeito -, e assim ela acabou pondo sua teoria em prática, mas fracassou: toda vez que o colocava na posição certa no rio e ia até a beira para tentar atravessar por cima dele, ele vinha atrás e a seguia, como se fosse uma montanha de estimação. Como os outros animais. Todos eles fazem isso.







sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Rio é tão longe

Trecho da carta de Otto Lara Resende para Fernando Sabino, escrita em Bruxelas, em 01 de junho de 1957.


 "Me escreva, seu sacripanta. Você já viveu experiência igual e eu lhe escrevi muito. Me conte tudo. Fale com o Hélio para escrever, fale com o Paulo, com o Castello, com todo mundo. Não mando já uma carta ao Paulo, porque não tomei nota do endereço dele. Nem do seu, foi o Fernando que me mandou, mas do Paulo não mandou. Ouvi dizer (pelo mesmo Fernando) que saiu um artigo contra meu livro, por que não me mandam? E meu conto - saiu no Estado? Veja se me diz uma palavra, se não saiu vou escrever ao Décio. Valeria a pena mandar correspondência para algum jornal aí? Não seja ingrato. Escreva generosamente. Vi aqui, por vários dias, o Jorge C. Brito e o Dadá, que moram em Amsterdam. De vez em quando, fala-se de você. HVS deixou aqui um rastro de simpatia, Laís especialmente e o pessoal todo em geral gostaram muito dela. Em que ficou o seu caso no judiciário? Que pena! Ah, Fernando, a vida não é apenas um sorriso de cocktail! Abraços para todos".






segunda-feira, 22 de junho de 2015

Sophia

MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu echo os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo.

Que ao longe,
Na mais longínqua praia,
Onde só haja espuma, sal e vento,
Ele se perca, tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento.

E que ninguém repita o seu nome proibido.



terça-feira, 16 de junho de 2015

Poesia Exploratória



Quem alisa os meus cabelos?
Quem me tira o paletó?
Quem, à noite, antes do sono,
acarinha meu corpo cansado?
Quem cuida de minha roupa?
Quem me vê sempre nos sonhos?
Quem pensa que sou o rei desta pobre criação?
Quem nunca se aborrece de ouvir a minha voz?
Quem paga o meu cinema, seja de dia ou de noite?
Quem calça os meus sapatos e acha meus pés tão lindos?
Eu mesmo.

2 de dezembro de 1945.


sábado, 13 de junho de 2015

Um pouquinho de Nelson Rodrigues

Só pra gente ver como ele escrevia bem. Trecho inicial de "Nelsinho". Publicado em "O Globo". Primeiro de agosto de 1968.

1. Depois do último carnaval, passei uma semana escrevendo sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de "Flor de Obsessão". Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, "Nelson Rodrigues" e, por baixo do nome, a "Flor de Obsessão", (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: convivo muito bem com as minhas idéias fixas.

2. E a minha fixação, nos quatro dias de carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante - não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra "pudor" é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: - "supimpa". Aí está: "supimpa".) Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.

3. Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás, uma menina linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, moreno como um galã de neo-realismo italiano. O jato batera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.

4. Por uma fúnebre coincidência, as câmeras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangesca. 

terça-feira, 9 de junho de 2015

A desumanização



O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. 

A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.

Pintávamos os móveis de flores escuras. Demorávamos muito e a casa cheirava a tintas más, baratas, que demoravam a secar. O meu pai impedia-me de chorar pelo ofício da racionalidade.

Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos. Talvez não representemos nada, o que me parece impossível. Qualquer rasto que deixemos no eremitério é uma conversa com os homens que, cinco minutos ou cinco mil anos depois, nos descubram a presença. Dificilmente se concebe um homem não motivado para deixar rasto e, desse modo, conversar. E se houver um eremita assim, casmurro, seguro que terá pelo chão e pelo céu uma ideia de companhia, espiritualizando cada elemento como quem procura portas para chegar à conversa com deus. Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma ficção das nossas cabeças. 




domingo, 7 de junho de 2015

Grande Sertão

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei, --  "Amanhã eu tiro..." - falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo.... O cabo - por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...

Somemos, não ache que religião afraca. Senhor, ache o contrário. Visível que, aqueles outros tempos eu pintava - cré que o caroá levanta a flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. 


Se há alguma livro em língua portuguesa mais mais do que esse, alguém me avisa.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Decididamente

De Vinícius e Edu Lobo.



Decididamente, eu não sou gente
Eu sou um ente incompetente, mal acabado
Eu, infelizmente, não consigo sequer ser um mendigo
Dá tudo errado

Deus, quando me fez, devia estar muito invocado
Ganhou um campeonato de fazer nego sofrer

Urubu pousou na minha sorte
Eu nasci pra boi de corte
Deu cupim no meu viver

Sábado passado, quando eu vinha
Uma zinha da "pontinha"
Fez uma linda carinha para mim
Eu, aí, peguei minha pessoa
E fui andando para a boa
Na esperança de um domingo menos ruim

Pois, amigo, que é que você acha
Vou e levo uma "bolacha"
De um frajola que eu não sei de onde surgiu
E que, além de tudo, não contente
Me mandou apenasmente

Quando você está mesmo sem sorte
Nem a vida e nem a morte
Querem nada de saber de você, não
Você pode estar morto, defunto
E vêm os vermes todos juntos
Lhe pedir pra não seguir a refeição

Chega o dia e a vida está tão chata
Que você pega e se mata
Dá um tiro que parece de canhão
Mas a sua sorte é tão ingrata que ele sai pela culatra
Com licença da expressão.