sábado, 13 de junho de 2015

Um pouquinho de Nelson Rodrigues

Só pra gente ver como ele escrevia bem. Trecho inicial de "Nelsinho". Publicado em "O Globo". Primeiro de agosto de 1968.

1. Depois do último carnaval, passei uma semana escrevendo sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de "Flor de Obsessão". Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, "Nelson Rodrigues" e, por baixo do nome, a "Flor de Obsessão", (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: convivo muito bem com as minhas idéias fixas.

2. E a minha fixação, nos quatro dias de carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante - não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra "pudor" é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: - "supimpa". Aí está: "supimpa".) Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.

3. Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás, uma menina linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, moreno como um galã de neo-realismo italiano. O jato batera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.

4. Por uma fúnebre coincidência, as câmeras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangesca. 

Um comentário:

Fal disse...

"Fundei a minha solidão diante do vídeo." craque, craque, craque.