Só pra gente ver como ele escrevia bem. Trecho inicial de "Nelsinho". Publicado em "O Globo". Primeiro de agosto de 1968.
1. Depois do último carnaval, passei uma semana escrevendo sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de "Flor de Obsessão". Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, "Nelson Rodrigues" e, por baixo do nome, a "Flor de Obsessão", (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: convivo muito bem com as minhas idéias fixas.
2. E a minha fixação, nos quatro dias de carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante - não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra "pudor" é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: - "supimpa". Aí está: "supimpa".) Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.
3. Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás, uma menina linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, moreno como um galã de neo-realismo italiano. O jato batera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.
4. Por uma fúnebre coincidência, as câmeras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangesca.
Um comentário:
"Fundei a minha solidão diante do vídeo." craque, craque, craque.
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