quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Com o preferido

Começo o ano com um dos favoritos, com um dos trechos que mais emociona. E como disse Paulo Mendes da Rocha (o arquiteto mesmo, falando sobre o Grande Sertão: essa obra é uma universidade toda). 

Eu dizendo que  Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim - nu de tudo. E ela disse:
- "A Deus dada. Pobrezinha..."
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuaia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos pra trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura.. E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
- "Meu amor!.."
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.


Páginas 530 e 531.

2 comentários:

fal disse...

que coisa divina!

Andréa disse...

É demais, meu bem. Demais.