sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ou o poema contínuo

É um sinal de felicidade quando você lê um poema que nunca leu antes e dá um sorriso (no meu caso) e ainda fala alto: "que coisa linda". Vejam:


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - 
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega,
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.




Herberto Helder, páginas 13 e 14 do livro acima.



3 comentários:

Elaine Cuencas disse...

Arrebatamento! Ai, os poetas! Ai, a descoberta! (muitos "ai,que lindo", lendo um poema desses... muitos)

Bjs e obrigada!

Andréa disse...

O arrebatamento... isso mesmo, meu bem. Um beijo!

Fal disse...

Gente, que coisa linda. <3