Trecho inicial do texto "
Muerte na passeata" publicado em "O Globo" em 11 de abril de 1968.
"Um tigre é sempre um tigre. Pode vir o mundo abaixo. Ele tem um elenco de instintos e daí não sai. Há de ser tigre do berço ao túmulo. Do mesmo modo, a cabra é uma cabra para sempre. E assim o bode de charrete, com sua barbicha flamenga e os chifres em caracóis. Só o homem pode deixar de ser homem, e repito: só o homem pode se desumanizar.
Coincide que nós vivemos uma época crudelíssima. Para preservar a sua humanidade, o sujeito tem de lutar, ferozmente, contra tudo e contra todos. E das duas uma - ou cada um constrói a sua solidão ou os outros o matam. (Alguém disse que os 'outros' são os nossos assassinos). Vêm de toda parte as pressões que nos desumanizam. Há a manchete, o rádio, a televisão, o anúncio e, em suma, todo uma gigantesca estrutura que exige a nossa falsificação.
Falsificação. Finalmente, explodiu a palavra. Tudo falsifica: o pai, o estudante, o operário, o intelectual, o namorado, o sacerdote. Há o Vietnã, há o assassinato de Luther King, há a China. E cada fato exige de nós uma posição fulminante um gesto, uma frase, um sentimento, um palavrão. Os temperamentos mais doces são hoje radicais, ululantes e obscenos.
E, então, acontece o seguinte: estamos todos acuados."