quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O paraíso são os outros



A coisa mais divertida de perceber: os casais não eram família antes. Eles eram gente desconhecida que se torna família. Mesmo que os filhos julguem que pai e mãe se conhecem desde sempre, isso não precisa ser verdade.

Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido.

Por vezes, faço uma lista de nomes das pessoas importantes para mim para lembrar delas. Mesmo que não lhes fale, penso em como estarão, se bem ou mal. Quando me parece que podem estar mal, telefono a perguntar. Quase sempre estou errada. Mas gosto de ter a certeza do erro.

A minha mãe diz que só crescemos quando reconhecemos os nossos erros. Enquanto não o fizermos seremos menores. Crescer é diferente de aumentar de tamanho ou ganhar idade. A minha mãe diz que grandes são os que corrigem.




segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Final de "Carta dispersa à beira de um não-ser"

Amigo,
não me queiras mal porque te amo
se pensas, porque te amo, que te magoaria.
Ainda é cedo para o tempo de rudeza,
não que sejas fraco, não o és,
mas porque dóis saber que um certo tempo
permaneceu em mim como uma seta

PS Já se faz noite. Estou sozinho.
Tenho uma dor que mata, a mão vazia:
mas ainda que anoiteça, Fernando,
é certo que amanhece.

Caio F. Abreu


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Diadorim e Riobaldo. Riobaldo e Diadorim

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera... Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! - linda cor...


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ana Cristina

10.1.82

Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêutico depois de ter dito que a minha cura era "falar tudo", que me desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo dizer que hoje, com o Patinho, senti que o meu compromisso primeiro era com a mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secundariamente com ele, com um apelo da realidade muda. Quero que uma mulher me acompanhe (ou ao menos o Armando, que fala tudo e preenche o vazio). Há coisas demais para fazer, não quero ir para minha casa, onde me sinto independente demais (é como um excesso). Volto para a casa de mamãe, e tenho de suportar a angústia de ter que me emudecer até a Mary voltar. Angústia é fala entupida.


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Caio 3D - O essencial da década de 1980

E agora?
Três, quase quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?

Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não dever ser apenas isso, segurar a barra.

Continuamos carregando nossas pequenas maldições - mais orgasmos, insônias, pesadelos, excessos de álcool e cigarro, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém e ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.

Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?

Batalhamos a paz, a divina indiferença. Pra termos sede de amor e de beleza. 

(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)

Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?



Foto da minha prateleira. Peguei o livro pra folhear. Essa página (192) não estava marcada como favorita. Vai saber o porquê. Agora está.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Parte, e tu verás


Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Parecem tempos imemoriais.

Parte, e tu verás
Como o que era real resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz.

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás.

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere onde jaz
O amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente mente
Que já não sabe mais.
Vida, o presente: morte, o ausente -

Parte, e tu verás...

1961



domingo, 8 de novembro de 2015

Metamorfoses (6)

O terror estampado
O terror estampido

O terror o terrar o aterrar
O terror de aterrar. Terror de decolar.

A decolagem do avião
A decolagem da mão
A decolagem do não.

O til. O tom. O Tao.

O transradar
O transrodar
O transformar
O trnasfoamor
O transmontar
O tremdescer
O subirtrem

Os trovões do espaço. Os trovões do espesso. Os trovões da espada.

As mãos do amanhecer. Os pés do anoitecer.
Os pais do amanhecer. As mães do anoitecer.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A norma e o domingo

Comportei-me mal,
perdi o domingo,
Posso saber tudo
das ciências todas,
dar quinau em aula,
espantar a sábios
professores mil:
comportei-me mal,
não saio domingo.

Fico vendo mosca
zanzar e zombar
de minha prisão.
Um azul bocejo
derrama-se leve
em pó de fubá
no pátio deserto.
Não há futebol,
não quero leitura,
conversa não quero,
vai-se meu domingo.

Lá fora a cidade
é mais provocante
e seu pálio aberto
recobre ignorantes
dóceis ao preceito.
Que aventura doida
no domingo livre
estarão desfiando
enquanto eu sozinho
contemplo escorrer
a lesma infindável
do meu não-domingo?

Digo nomes feios
(calado, está visto).
Não vá ser-me imposta
a perda total
de quantos domingos
Deus for programando
em Minas Gerais.
Abomino a ordem
que confisca tempo,
que confisca vida
e ensaia tão cedo
a prisão perpétua
do comportamento.