sábado, 26 de julho de 2014

Eu volto com Valter

Sempre o mesmo raciocínio: como assim alguém pode conseguir escrever deste jeito e descrever isso dessa maneira perfeita? Pergunto para mim mesma isso toda vez que leio certos autores. Nem vou falar de todos os livros do Valter Hugo Mãe. Minha dica: comecem por este - A máquina de fazer espanhóis (aqui, trecho das páginas 105 e 106). 

Valter e eu - 30 de abril de 2014. No café da Martins Fontes da Paulista


"é fácil de entender. quando queremos que o tempo nos faça fugir de alguma coisa, de um acontecimento, inicialmente contamos os dias, às vezes até as horas, e depois chegam as semanas triunfais e os largos meses e os didáticos anos. mas para chegarmos aí temos de sentir o tempo também de outro modo. perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha-tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o Brasil, enfim, tudo. e também é preciso superar a primeira saída de carro a sós. o primeiro telefonema que não pode ser feito para aquela pessoa. a primeira viagem que fazemos sem a sua companhia. os lençóis que mudamos pela primeira vez. as janelas que abrimos. a sopa que preparamos para comermos sem mais ninguém. o telejornal que já não comentamos. um livro que se lê em absoluto silêncio. o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegamos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injeta também a nitidez de quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto, que por vezes se perde mas ressurge sempre nessas alturas, até o timbre da sua voz, chamando o nosso nome ou, mais cruel ainda, dizendo que nos ama com um riso incrível pelo qual havíamos justificado em mil ocasiões no mundo".

Respeitando sempre as minúsculas do autor. Que coisa linda.

2 comentários:

Elaine Cuencas disse...

Lindo... foi uma dessas descobertas coletivas. As melhores amigas lendo juntas... agora vou começar A desumanização!

Andréa disse...

Quero muito que você leia para depois compartilhar comigo, Elaine... "A desumanização" foi muito importante pra mim. Um beijo, querida.