terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Diadorim

Voltando ao normal, no dia do meu aniversário, sempre com Grande Sertão:

"Mas Diadorim perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado daquilo - num vem-vem de amor. Amor é assim - o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão!

Conferindo que nem vergonha eu tive. Não ter vergonha como homem, é fácil: dificultoso e bom era poder não se ter vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o senhor verá: como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o maior segredo?"


sábado, 12 de dezembro de 2015

Dezembro

Estou fora e meus livros não estão por perto. Volto ainda este ano. Coloco a foto do lançamento que está me esperando em casa. 


domingo, 6 de dezembro de 2015

Publiquem mais livros de cartas, por favor.

De Otto Lara Resende para Fernando Sabino. Trecho de carta escrita em Bruxelas, 30 de julho de 1959.

"Deve ter uma explicação, ou pelo menos uma ficha catalogada, para o meu caso. Freud explica isso. Vejo meu nome impresso, me dá um aborrecimento de morte, uma contrariedade sincera, profunda e estapafúrdia, parece acusação pública, prestação de contas, julgamento. Por isso resumi meu nome de Otto Oliveira de Lara Resende para Otto Lara Resende, agora para Otto Lara e já estou me assinando O. Lara, amanhã começo a assinar O., depois engulo esse O. com pontinho, como numa dessas mágicas de circo, sumi, desapareci, me escondi no primeiro buraquinho do rodapé, vou morar no ninho de uma ratazana matronal, espicho a cara num perfil de camundongo, ai como deve ser bom ser camundongo de rabinho não muito comprido, chiando debaixo do assoalho, até que vem o Gatão e zás! Me devora, viro quimo e quilo ventral, saio cocô no cuzinho do gato, vou estrumar uma plantinha tenra, quem sabe perfumarei uma flor silvestre - é toda a glória que posso pedir, eu o inútil, o imprestável, o secreto, o envergonhado de ser, e assim entro no ciclo universal da vida, me transformo, me metamorfoseio mas não no ambicioso besouro de Kafka sim no limpo cocozinho de um preguiçoso gato de pensão (Manuel Bandeira). Não é preciso explicar meu estado de espírito, você já entendeu tudo."


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma coisinha linda de Mario Quintana

Remissão

Naquele dia fazia um azul tão límpido, meu Deus, que eu me sentia perdoado para sempre não sei de quê.


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Poesia reunida

A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
 - só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O paraíso são os outros



A coisa mais divertida de perceber: os casais não eram família antes. Eles eram gente desconhecida que se torna família. Mesmo que os filhos julguem que pai e mãe se conhecem desde sempre, isso não precisa ser verdade.

Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido.

Por vezes, faço uma lista de nomes das pessoas importantes para mim para lembrar delas. Mesmo que não lhes fale, penso em como estarão, se bem ou mal. Quando me parece que podem estar mal, telefono a perguntar. Quase sempre estou errada. Mas gosto de ter a certeza do erro.

A minha mãe diz que só crescemos quando reconhecemos os nossos erros. Enquanto não o fizermos seremos menores. Crescer é diferente de aumentar de tamanho ou ganhar idade. A minha mãe diz que grandes são os que corrigem.




segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Final de "Carta dispersa à beira de um não-ser"

Amigo,
não me queiras mal porque te amo
se pensas, porque te amo, que te magoaria.
Ainda é cedo para o tempo de rudeza,
não que sejas fraco, não o és,
mas porque dóis saber que um certo tempo
permaneceu em mim como uma seta

PS Já se faz noite. Estou sozinho.
Tenho uma dor que mata, a mão vazia:
mas ainda que anoiteça, Fernando,
é certo que amanhece.

Caio F. Abreu


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Diadorim e Riobaldo. Riobaldo e Diadorim

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera... Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! - linda cor...


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ana Cristina

10.1.82

Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêutico depois de ter dito que a minha cura era "falar tudo", que me desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo dizer que hoje, com o Patinho, senti que o meu compromisso primeiro era com a mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secundariamente com ele, com um apelo da realidade muda. Quero que uma mulher me acompanhe (ou ao menos o Armando, que fala tudo e preenche o vazio). Há coisas demais para fazer, não quero ir para minha casa, onde me sinto independente demais (é como um excesso). Volto para a casa de mamãe, e tenho de suportar a angústia de ter que me emudecer até a Mary voltar. Angústia é fala entupida.


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Caio 3D - O essencial da década de 1980

E agora?
Três, quase quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?

Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não dever ser apenas isso, segurar a barra.

Continuamos carregando nossas pequenas maldições - mais orgasmos, insônias, pesadelos, excessos de álcool e cigarro, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém e ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.

Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?

Batalhamos a paz, a divina indiferença. Pra termos sede de amor e de beleza. 

(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)

Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?



Foto da minha prateleira. Peguei o livro pra folhear. Essa página (192) não estava marcada como favorita. Vai saber o porquê. Agora está.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Parte, e tu verás


Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Parecem tempos imemoriais.

Parte, e tu verás
Como o que era real resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz.

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás.

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere onde jaz
O amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente mente
Que já não sabe mais.
Vida, o presente: morte, o ausente -

Parte, e tu verás...

1961



domingo, 8 de novembro de 2015

Metamorfoses (6)

O terror estampado
O terror estampido

O terror o terrar o aterrar
O terror de aterrar. Terror de decolar.

A decolagem do avião
A decolagem da mão
A decolagem do não.

O til. O tom. O Tao.

O transradar
O transrodar
O transformar
O trnasfoamor
O transmontar
O tremdescer
O subirtrem

Os trovões do espaço. Os trovões do espesso. Os trovões da espada.

As mãos do amanhecer. Os pés do anoitecer.
Os pais do amanhecer. As mães do anoitecer.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A norma e o domingo

Comportei-me mal,
perdi o domingo,
Posso saber tudo
das ciências todas,
dar quinau em aula,
espantar a sábios
professores mil:
comportei-me mal,
não saio domingo.

Fico vendo mosca
zanzar e zombar
de minha prisão.
Um azul bocejo
derrama-se leve
em pó de fubá
no pátio deserto.
Não há futebol,
não quero leitura,
conversa não quero,
vai-se meu domingo.

Lá fora a cidade
é mais provocante
e seu pálio aberto
recobre ignorantes
dóceis ao preceito.
Que aventura doida
no domingo livre
estarão desfiando
enquanto eu sozinho
contemplo escorrer
a lesma infindável
do meu não-domingo?

Digo nomes feios
(calado, está visto).
Não vá ser-me imposta
a perda total
de quantos domingos
Deus for programando
em Minas Gerais.
Abomino a ordem
que confisca tempo,
que confisca vida
e ensaia tão cedo
a prisão perpétua
do comportamento.


sábado, 31 de outubro de 2015

Aventura na casa atarracada

Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse nada mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado:
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia,
e cimento armado
para o primeiro andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo,
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

sábado, 24 de outubro de 2015

Alice

Uma coisa bonita para este sábado:

a noite
mais longa
dessa vida

no céu
o cometa passa
na terra
meu pensar te abraça

você
irmão
filho
amigo

não está
mas fica
enfim
comigo




quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Fal

Nem vou falar nada. Na página 77:

Você será o fim da vida, tal e qual eu a conheço. A minha vida. E o que virá depois? Eu não sei, você não sabe. "Não há garantias", você diz. Então, não quero. Quero o certo, o cotidiano, o imutável, o previsto, o listado, o milimetricamente programado. Quero o que tenho certeza de que está no armário da cozinha, na terceira gaveta do guarda-roupa, no envelope dentro da pasta. Quero o estável, o sólido, a rocha. Quero um dia depois do outro, consultas marcadas com duas semanas de antecedência, nenhum abalo, nenhuma grande alegria, nenhuma grande dor. Quero o impossível.




sábado, 17 de outubro de 2015

No teu deserto

Eu li e fiquei emocionada.



Páginas 115 e 116:

E tantos anos passaram desde então! A minha espada do mercado de Tamanrasset continua enferrujada, mas não mais do que já estava antes. Os anos passaram por mim, não por ela. Um dia em que tive um grande desgosto, deitei-me para dormir sem saber como seria a minha vida para diante. Quando acordei, olhei-me ao espelho e vi, espantado, que duas grandes rugas me tinham nascido nessa noite, junto aos olhos. Não estavam lá antes de eu me ter deitado na véspera, mas agora estavam, nítidas e verdadeiras, a menos que eu as injetasse de botox e alguém inventasse uma cirurgia contra os desgostos. E habituei-me às rugas, conformei-me com o tempo que passa. Às vezes, lá onde eu moro, fico à noite a olhar as estrelas como as do deserto e oiço o tempo a passar, mas não me angustia mais: eu sei que é justo e que tudo o resto é falso. E às vezes, nesse terraço onde vejo e oiço as estrelas, onde escuto e aceito a ampulheta da minha vida, acendo um lume à maneira do Ali, com os galhos e ramos secos que fui colhendo durante o dia, ao passear pela paisagem. E, às vezes também, quando então percebo que tudo está em paz e faz sentido, falo com a tua estrela, sei que tu me guardas e vigias, que perdoas todos estes anos de silêncio, tão cruéis e irreparáveis ausências, tanto medo, Cláudia, de seguir a tua estrela, a tua luz, em vez de tantas ofuscantes ilusões.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Um pouco de Nelson Rodrigues

Trecho de crônica publicada em O Globo - 9 de abril de 1968.

1 - O perfeito casal exige uma vítima. Tanto faz que seja o marido ou a mulher. Não importa. O que importa é que cada qual viva o seu papel. A vítima terá de comportar-se como vítima, sem discutir a própria função e o próprio destino. Por sua vez, o algoz há de ser eternamente "o algoz". Se os dois observarem essa coerência, a união chegará às bodas de prata, de ouro e continuará no Céu ou no Inferno, sei lá.

2 - De vez em quando, porém, há a catástrofe: a vítima se enfurece ou o algoz se regenera. Rompe-se o equilíbrio conjugal; e nada mais é possível. Não pode sobreviver a união de uma ex-vítima com um ex-algoz.

3 - Eis o que eu queria dizer: como o amor, a amizade também depende de uma vítima. Entre dois amigos há, fatalmente, o não-correspondido. Sim, há um que gosta mais do outro, e cujo sentimento é mais firme, harmonioso e profundo. Por exemplo, a minha amizade com Otto Lara Resende.

4 - Há sempre alguém que me pergunta: - "Você e o Otto são amigos?" Respondo, com risonho descaro: - "Amicíssimos." Ainda ontem, Clarice Lispector fez uma entrevista, comigo, para Manchete. E me dizia a grande artista: - Você, o Otto e o Hélio Pellegrino são muito amigos, não são?" Dei-lhe esta resposta límpida e exata: - "Se são, não sei. Eu sou."


domingo, 11 de outubro de 2015

Cantiga de hoje à noite



Não. Não me peçam gentilezas.
Se penso em flores, céu e campo,
o pensamento espalhado bucólico em recantos de infância,
se pesquiso espantos renascidos de ocultos vãos de memória,

a forma me sai fria, em gelo e sal.
Nos ásperos caminhos de meu tempo
já não encontro passos predestinados:
cirandas confusas em torno de ídolos de pedra
desesperados abraços, desvairados encontros
sem amanhã, sem depois.
Já não consigo amenidades no falar.
As estruturas criadas em cristal são apenas vidro,
vidro partido violentando veias de onde nasce um sangue inerte.

Inútil sangue de meu tempo
Percorrendo escuros caminhos de cansaço.

Por favor, não esperem doçuras de meu canto.
Não esperem doçuras de ninguém mais,
não esperem sequer o canto:
maldito aquele que quiser purezas.
E no entanto, houve um tempo em que eu cantava.
Nos teares antigos de meu peito
rocas de prata entreteciam esperas,
intermináveis rendas de alegria.
Geradas por raízes de terra
uma seiva lenta e calma envivecia os membros.
Ainda assim, o voo pesa.
O impossível voo em meu corpo sem asas.

Peçam-me apenas silêncios. E que no meu escuro claustro
encontre aqueles cantares, encontre a mão de um amigo.
Mas já não creio em canções e os amigos me traíram.
E em traições e guitarras, difícil achar a flor.

13 de abril de 1969.




sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Dicas úteis para uma vida fútil



O melhor livro, o melhor título - do gênio.

Aquele terno branco.

"As observações de Mark Twain também foram publicadas no New York World de 8 de dezembro de 1906. Seu terno de flanela branca, explicou ele, era o "uniforme da Associação Americana de Pureza e Perfeição, da qual sou presidente, secretário, tesoureiro e único sócio nos Estados Unidos".

- Por que você não pergunta o motivo para eu usar uma roupa tão inadequada com a estação? Vou lhe dizer. Descobri que, quando um homem chega à avançada idade de 71 anos como eu, o fato de ver sempre roupas pretas pode ter efeito deprimente. Roupas de cores leves são mais agradáveis aos olhos e animam o espírito. Porém, claro não vou obrigar todo o mundo a usar essas roupas só para me agradar, por isso eu mesmo uso.

- É claro que, antes de um homem chegar à minha idade, o medo de ser criticado impede que ceda à própria vontade. Não tenho esse medo. Sou muito a favor de roupas coloridas. Gosto, por exemplo de ver o traje das mulheres quando vou à ópera. Nada é mais deprimente do que que o sombrio preto que as normas masculinas exigem para ocasiões formais. Um grupo de homens em trajes de noite parece um bando de corvos e transmitem essa sensação.

- O homem mais bem vestido que já vi foi um nativo das Ilhas Sanduíche, que me chamou atenção há trinta anos. Quando queria usar algo especial numa recepção pública ou num feriado, punha óculos. No mais, bastava a roupa que Deus tinha lhe dado.





terça-feira, 6 de outubro de 2015

Esplendorosa borboleta de sangue



todos os monstros têm o teu
nome, de mais ou menos bocas, grandes ou
pequenas milhares de patas, sangue jorrando ou
líquenes desfeitos, todos os monstros têm
o teu nome e por ofício, perseguem-me. entram
por mim no soalheiro mundo dos
homens, usam a minha incúria

eu sou
uma esplendorosa borboleta de sangue. um
ser que voa no coração

e cada monstro virá dizer que me ama e
saberá convencer-me a suportar os seus
tentáculos, a apreciar até os beijos nos
orifícios mucosos por onde expele a
língua e será capaz de me fazer querer o
esbracejar nocturno dos seus gestos

e eu direi o teu nome e nunca me
enganarei.

sábado, 3 de outubro de 2015

Mais Marcelo Rubens Paiva

"O passado é conservado por ele mesmo. Nos segue por toda a vida. Nosso cérebro foi feito para guardar o passado e trazê-lo à tona quando precisamos, para esclarecer uma situação do presente. Se não fosse esse truque do cérebro, acharíamos que o passado continua presente. Enlouqueceríamos. Tem uma válvula que registra o ano em que as coisas aconteceram. Válvula que, quando sonhamos, é aberta.

Mas e quando o presente não faz sentido? Quando ele passa a não existir, vira um furacão de imagens, um vento que impede de enxergar com clareza, é substituído pela memória? Não. Pois, como não precisamos dela, já que não existem questões a serem esclarecidas no presente, a memória também se apaga."

Página 249.


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Sintonia para pressa e presságio

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo de quem cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.



Obs: ainda bem que sempre acho um Leminski novo pra por aqui.

domingo, 27 de setembro de 2015

Ou o poema contínuo

A manhã começa a bater no meu poema.
As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
o rodopio das rosáceas do meu
poema batido pela revelação das coisas.
Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
pelo sangue.
Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
rapidamente transfigurada.
Batem nas portas das palavras,
sobem as escadas desta intimidade.
É como uma casa, é como os pés e as mãos
das pessoas invasoras e quentes.

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
deitado de costas, com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu quieto pensamento.
Batem, sobem, abrem, fecham,
gritam à volta da minha carne que é complicada carne
do poema.

Um inspiração fende lírios na minha testa,
fende-se ao meio
como os raios fendem as direitas taças de pedra.
Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem levitante,
as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que rola e a morte
e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
à beira do povo que até mim separa os espinhos das formas
e traz sua pureza aguda e legítima.
- Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de ouro ou peixes delicados de música fria.

- Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

O poema dói-me, faz-me.
O povo traz coisas para a sua casa
do meu poema.
Eu acordo e grito, bato com os martelos
dos dias da minha morte
a matéria secreta de que é feito o poema.

- A manhã começa a colocar o poema na parte
mais límpida da vida. E o povo canta-o
enquanto crescem os campos levantados
ao cume das seivas.
A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
do mundo.
















quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Tu e eu



Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só crescer
até dar pé.
Eu não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa.
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy.
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobão
eu sou mais albinônico.
Tu, fão.
Eu, fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico.
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu, piniquim.
Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou penitente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu, multo.
Eu, carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e outro insano.
Tu, cano.
Eu, clidiano.

Dizes na cara
o que tem vem à cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu, tano.
Eu, femismo.










terça-feira, 22 de setembro de 2015

A Bíblia do Caos - Millôr

Em "Beleza":

Lição de coisas: A estética súbita de uma flor, de uma folha, a tranquila emoção da luz do amanhecer, o esplendor de qualquer coisa ou de alguma coisa, não são um projeto, não têm objetivo, não almejam o futuro ou a eternidade. Beleza (plenitude) é hiperqualidade natural, fim em si mesmo, supérfluo exibido e usufruído sem quê nem para quê. Nem pensar em utilidade, queridinha. O que eu fiz eu fiz porque sou mesmo assim, não tem que agradecer. Agora vira pra lá e dorme.




sábado, 19 de setembro de 2015

Estrela Ruiz Leminski

"se em cada pé tem um tropeço
o meu passado pelo avesso
cada tempo o seu invento
cada passo o seu intento
eu faço desse parto, o meu rastro
o meu próprio alimento

de que adiantam os meus olhos
enxergando o que não aguento
de que adianta mais uma dose
qualquer coisa pro meu alento
eu faço de qualquer parte, a minha arte
o meu momento

se piso em falso, escondo o jogo
se troco as bolas, invento outro
se pago pato, eu peço o troco
se pagam pouco, eu complemento
se é foda começar de novo
pelo menos eu tento."


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cantiga de amor idiota



Para mim doeu. Só de ler.

"Um punhado de sal
em plena ferida aberta
ou
como um sorvete gelado no nervo
exposto
do dente
ou
que nem uma brasa viva
fechada
dentro da mão
ou
igual arame farpado
no branco escuro do olho
ou
um prego no pé descalço
ou
um soco na cara nua
ou
punhal entrando na tripa

assim te ouvi dizer
- não."

04 de julho de 1977.


domingo, 13 de setembro de 2015

Mais "Ainda estou aqui"

Da página 34:

"Meu filho nasceu às 8h45. Me lembro e me lembrarei de cada segundo do seu parto. Me lembro de ver sua cabecinha saindo. De ele balançar os bracinhos na luz. De eu chorar sem sair lágrimas. Ou de sair lágrimas sem eu chorar. Duvido que me esquecerei de algum detalhe desse dia milagroso. Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono. Emocionar-se é passar de um estado para o outro. Você vê um quadro hoje. Vê o quadro de novo daqui a dez anos, o revê daqui vinte, trinta, quarenta... É o mesmo quadro com a mesma moldura, na mesma parede do mesmo museu, com a mesma luz, é você, mas cada vez será visto de outra forma. Cada vez ele nos conta uma história. O quadro não mudou. Já nós..."


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Otto e Fernando de novo

Trecho de carta do Otto Lara Resende para Fernando Sabino. "O Rio é tão longe".



"Lisboa, 6 de setembro de 1968.


São suas horas e picos da manhã, volto do cassino do Estoril, onde arrisquei uns escudos na roleta, ganhei quatro plenos de saída, parei, perdi 320 escudos na maquininha diabólica e devoradora, troquei as fichas e caí fora, Helena me esperava no salão lá fora, com a Mônica e a Andréa. Copo de leite pra variar (acho que sou o único sujeito em Portugal que toma leite de madrugada), cafezinho e cigarros às pampas, preciso fumar menos e trabalhar mais. Como é bom trabalhar, mesmo bestamente, estou cada vez mais convencido de que quem não cumpre com o seu dever cotidiano (os mais bestas: ir ao dentista, cortar o cabelo, fazer  barba atrasada, pagar a conta do alfaiate, comprar goma arábica) merece ser condecorado, que é um pobre-diabo infeliz, sem a alegria moral remuneradora de quem enche o seu dia na bigorna humilde dos deverezinhos de todo-santo-dia. Eu já perdi a esperança de me recuperar. Sou um caso perdido."


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Diadorim e Riobaldo sempre

"Pois então: o meu nome, verdadeiro é Diadorim... Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo..."

Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos - logo eu disse:

-"Diadorim... Diadorim!" - com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam. Diadorim. Sol-se-pôr. 



terça-feira, 1 de setembro de 2015

A desumanização

"Levava as mãos às minhas, como se fosse velha, e pedia-me: ajuda o pai, não deixes de comer, lê os livros das viagens, namora um homem lavado, pede por mim à Islândia, pede a deus, diz-lhe que componha o órgão da igreja, faz carinhos aos patos, não lhes parta os ovos, celebra sempre a festa do nosso aniversário, ainda que estejas sozinha, sem ninguém, aprende as coisas da escola que não vou aprender, toma conta das respostas para as minhas mensagens, foge do Einar, já sabes, aprende o arrependimento, ri-te muito. Se alguma das minhas garrafas vier devolvida, atira outra vez. Ninguém precisa de saber que já não estou aqui. Se os mortos forem heróis, vou realizar os teus sonhos. Vou ficar a olhar por ti, mesmo que não me consigas ver. Eu acho que os mortos sabem as coisas todas da escola. Não achas. Não tenhas medo. Não é preciso termos tanto medo, só um bocadinho."



Se tem algo mais bonito, eu não sei.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Haikai

Novo livro da Alice Ruiz.


"aconchegados
entre a novela e o novelo
pontos sem nó"



quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Ana Cristina César

Este é um dos meus livros mais lindos, sem dúvida. Fazia tempos que eu não falava dele aqui. Um trabalho maravilhoso.

E na página 35.


Por enquanto

Quando
então
sentada na cama de casal
lembro que nela te perdes de
beijos
estou sem ar
no ar mexo as mãos
olhos
força nos ombros no nariz;
a garganta solapa; via
estreita,
nossa conversa amena;
nossa amizade;
até o previsto e casto
adeus;
o tempo se poupa;
nos economiza;
o teu ouvido
mouco;
e o troco;
e enquanto isso,
fora,
o real constrói o poema,
imbatível.



terça-feira, 25 de agosto de 2015

Reflexão número 1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


sábado, 22 de agosto de 2015

Enchantagem



de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo

esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima

de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito

pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito

que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar

tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece verdade

o pau na vida
o vinagre
o vinho suave

pense e te pareça
senão eu te invento por toda eternidade





quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Mais memória



"A memória não é apenas uma pedra com hieróglifos entalhados, uma história contada. Memória lembra dunas de areia, grãos que se movem, transferem-se de uma parte a outra, ganham formas diferentes, levadas pelo vento. Um fato hoje pode ser relido de outra forma amanhã. Memória é viva. Um detalhe de algo vivido pode ser lembrado anos depois, ganhar uma relevância que antes não tinha, e deixar em segundo plano aquilo que era então mais representativo. Pensamos hoje com a ajuda de uma parcela pequena do nosso passado."

Página 117.


terça-feira, 18 de agosto de 2015

Estrela Leminski

"se tem curiosidade em tudo que faço
persiga meus dados
siga meus passos
leia meus recados

se te incomoda o que já fiz
jogue fora as cartas mofadas
rasgue fotos do passado
vá cuidar do seu nariz

mas se depois disso tudo
ainda te parece uma ferida
preste atenção se não queria
que fosse tua a minha vida"


domingo, 16 de agosto de 2015

Ainda estou aqui



O livro tem quase 300 páginas, faltam umas 80 para eu acabar. Não quero. Que livro. Que livro. Eu comprei há uns 4 dias. Levo ele comigo desde então. E com uma água ao lado porque quase sempre eu preciso parar e tomar um pouco para ninguém me ver chorar.

Na página 26:

"A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa."

Update: acabei. Fazia tempo que um livro não me fazia chorar assim. De soluçar ao final, de ter que ir lavar o rosto. Sei lá mais o que dizer. Só lendo. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Curtinho da Alice Ruiz S

minha estrela guia
desvia
e me atropela


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Oliver Sacks




Eu fico fascinada por pessoas com mais de um talento - "como assim é médico e um puta escritor?" Eu não queria terminar este livro. Eu fiquei dias nas últimas 100 páginas. Leiam. Que homem... Dr. Sacks, fique aqui com a gente, por favor. E os últimos parágrafos:

"They called me Inky as a boy, and I still seem to get as ink stained as I did seventy years ago.

I started keeping journals when I was fourteen and at last count had nearly a thousand. They come in all shapes from little pocket ones which I carry around with me to enormous tomes. I always keep a notebook by my bedside, for dreams as well as nighttime thoughts, and I try to have one by the swimming pool or the lakeside or the seashore, swimming is very productive of thoughts which I must write, especially if they present themselves, as they sometimes do, in the form of whole sentences or paragraphs.

When writing my Leg book, I drew heavily on the detailed journals I had kept as a patient in 1974. Oaxaca Journal too, relied heavily on my handwritten notebooks. But for the most part, I rarely look at the journals I have kept for the greater part of a lifetime. The act of writing is itself enough; it serves to clarify my thoughts and feelings. The act of writing is an integral part of my mental life; ideas emerge; are shaped, in the act of writing.

My journals are not written for others nor do I usually look at them myself, but they are special, indispensable form of talking to myself.

The need to think on paper is not confined to notebooks. It spreads onto backs of envelopes, menus, whatever scraps of paper are at hand. And I often transcribe quotations I like, writing or typing them on pieces of brightly colored paper and pinning them to a bulleting board. When I lived in City Island, my office was full of quotations, bound together with binder rings that I would hang to curtain rods above my desk.

Correspondence is also a major part of life. On the whole I enjoy writing and receiving letters - it is an intercourse with other people, particular others - and I often find myself able to write letters when I cannot "write", whatever Writing (with a capital W) means. I keep all the letters I receive, as well as copies of my own.. Now, trying to reconstruct parts of my life - such as the very crucial, eventful time when I came to America in 1960 - I find these old letters a great treasure, a corrective to the deceits of memory and fantasy.

A vast amount of writing has gone into my clynical notes - and for many years. With a population of five hundred patients and Beth Abraham, three hundred residents at Little Sisters homes, and thousands of patients in and out of Bronx State Hospital, I wrote well over a thousand notes a year for many decades, and enjoyed this; my notes were lengthy and detailed, and they sometimes read, other said, like novels.

I am a storyteller, for better and for worse, I suspect that a feeling for stories for narrative is a universal human disposition going with our powers of language consciousness of self, and autobiographical memory.

The act of writing, when it goes well, gives me a pleasure, a joy, unlike any other. It takes me to another place - irrespective of my subject - where I am totally absorbed and oblivious to distracting thoughts, worries, preoccupations, or indeed the passage of time. In those rare, heavenly states of mind, I may write nonstop until I can no longer see the paper. Only then do I realize that evening has come and that I have been writing all day.

Over a lifetime, I have written millions of words, but the act of writing seems as fresh and as much fun, as when I started it, nearly seventy years ago".

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Millôr



Se

Se o mundo fosse de palha
Eu punha fogo no mar,
E se o mar fosse de beijos
Eu bebia até cansar,
Se a água fosse de ouro
Ninguém vivia no bar,
Se peixe crescesse em árvores
Seria fácil pescar,
Se pardal comesse abelha
Que estranho seria o ar,
Se os porcos fossem limpos
Que grande e belo luar,
Se barata desse leite
O leite ia baratear,
Se os homens ruminassem
Não viviam a se queixar,
Se as ruas caminhassem
Eu não saia do lugar,
Se 6 e 6 fossem 4
3 e 3 seriam um par
Se fossem lá todos juntos
Ninguém pegava lugar,
Se reflexo valesse
O céu era o fundo do mar,
E se os ratos fossem valentes
Os gatos iam se mancar.

17 de agosto de 1973.

domingo, 2 de agosto de 2015

Dama da Noite

Às vezes é assim como o Caio fala:

"Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo , por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota - tá me entendendo, garotão?"



quinta-feira, 30 de julho de 2015

Fiction can poison the mind



In your world, you were supposed to care, you were supposed to show an interest in all realms of human knowledge, to study math as well as penmanship, music as well as science and your much-admired Holmes was saying no, some things were more important than others, and the unimportant things should be tossed away and forgotten, since they served no purpose except to clutter one's mind with useless bits of nothing. Some years later, when you found yourself losing interest in science and math, you recalled Holmes's words - and used them to defend your indifference to those subjects. An idiotic position, no doubt, but you nevertheless embraced it. Further proof, perhaps, that fiction, can indeed, poison the mind.