quinta-feira, 31 de março de 2016

O Jardim do Diabo

Do Veríssimo

"Todos estes livro, todas essas histórias, todas estas ideias, todas estas palavras não significariam nada - nada! - se não fosse uma coisa. Você sabe o quê?" Não adiantou eu fazer "não" com a cabeça, ele não estava me olhando. "Uma coisa que dá sentido a tudo, uma coisa sem a qual as palavras são apenas manchas no papel, todas as histórias não passam de encantações e todas as ideias nascem mortas. O que é? Me diga, o que é?" Eu disse que não sabia. Ele baixou a voz, dramaticamente, e respondeu sua própria pergunta. "O pecado." Certo", disse eu, como se tivesse estendido e concordava sem hesitação. "O pecado!", gritou ele. "O que nos condena é o que nos salva. Ou, pelo menos, salva a nossa literatura." Ele sentou na sua poltrona preferida, que tinha o couro rachado. Estava, agora, falando sozinho. "Muitas vezes você vai ler um livro e sente que ali falta alguma coisa. Ideias, ótimas. Redação, perfeita. Erudição. Estilo. Tudo. Mas falta uma noção de pecado. Você sente que o autor reuniu todos os ingredientes mas esqueceu o principal. Quem não tem a convicção do pecado nunca fará a grande literatura. Você concorda?" "Certo", respondi, cem por cento de acordo. Ele pareceu se dar conta da minha idade e fez um adendo. "É possível fazer manjar branco sem a essência de coco?" "Impossível", concordei. Manjar branco era uma das paixões dele. Anos mais tarde concluí que ele mantinha a biblioteca como um ex-alcoólatra mantém uma adega bem estocada, para ter sempre à mão a magnitude da renúncia. Ou um vertiginoso que escolhe viver à beira do abismo, como um desafio. Depois descobri que aquela era a sua vida clandestina. Uma das suas vidas clandestinas. Eu o entendi depressa demais.


Um comentário:

Fal disse...

Meu Verissimo favorito, de longe. O melhor, o melhor.