sábado, 25 de abril de 2015

Sempre acho um Leminski inédito



Meus livros estão anotados. Tudo que está aqui, todos estes anos, está anotado na primeira página dos seus respectivos livros. E às vezes encontro coisas que ainda não coloquei.

DONNA MI PRIEGA 88

se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios

no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?

a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?




sexta-feira, 24 de abril de 2015

Poema

Oh, aquele menininho que dizia
"Fessora, eu posso ir lá fora?"
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.


terça-feira, 21 de abril de 2015

No teu deserto

Continuação deste post aqui. 



"- Em que pensas?

- Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.

Tu não respondeste nada. Os teus olhos azuis, ainda estremunhados, o teu cabelo espalhado ao vento em todas as direcções, a tua cara de sono, de menina pequena, respondiam por ti - e, caramba, como tu ficavas bonita assim, sem precisares de dizer o que quer que fosse! Apenas a olhar em frente, como te tinha visto fazer em todos aqueles dias, no banco ao lado do meu no jipe. Tu falavas pouco e essa era uma das coisas de que eu gostava em ti. Quando tudo era bonito de mais ou duro de mais, tu ficavas calada a olhar silenciosamente. Falámos sobre isso uma vez, e eu disse-te que a vida me tinha ensinado que fácil era o ruído, as conversas sem sentido, a banalidade das palavras ditas sem necessidade alguma. De nós, os dois, tu eras, sem dúvida alguma, a mais calma, a mais feliz tranquilamente. A mais atenta, a mais disponível para o vazio e o silêncio. Ah, não te rias, eu observei-te bem, sei do que falo!"

Que coisa linda (eu só falo isso, mas é verdade).


domingo, 19 de abril de 2015

Caio



Primeira parte de "Breve Memória"

1. Muitos mares andei. Outros pensei.
E nos pensares muito mais vivi
que nos andares
pausados, estes. Compassados.
Lentos de agonia e de quebranto
numa rota de fogo
estilhaçada

Se idílios tive, nem no corpo
houve um mistério de luz
uma alvorada
uma avenca crivada de rubro
e de certeza. Não.
Não tive.

Mas nos voos mais abertos
me encantei. E um roteiro
de encontro, a mão calada,
uma face presente, perto à minha,
certa paz
certa riqueza
certa força - alada - em sonho tive.

De marcas não foi feito meu andar.
Nem de levezas.
Porque se andei
(lento
descompassado)
um voo desvairado de esperanças
transportava meu corpo,
meus pisares.

Alguns marquei. Outros marcaram.
Porém o passo nunca teve abrigo.
Albergue nunca fui. Nem me fizeram.
E se em voos tive a face amada
em corpo fui pobreza
em corpo fui silêncio e nada:
um amado de ausência eu acalento.




sexta-feira, 17 de abril de 2015

Riobaldo

"Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de cumpadre meu Quelemém, doutrina dele de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar - o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? O que eu faço, que quero, muito curial! E em cara de todos faço, executado. Eu não tresmalho!"




sábado, 11 de abril de 2015

Poeminha maçante / Por que não ser também um chato?

Sempre sofri
O ataque inesperado
Do primo chato,
Do amigo chato,
Do chato ocasional
Que nem espera ser apresentado.

E queria saber como
(Na certa querendo ser simpático)
Teria ele chegado à solidão
Da chatidão.

Mas de repente percebi
Sem ser doutor
Que a chatice é a única doença
Que não dói no portador
E resolvi ser chato.

Desfaço agora com o máximo desdém
De quem ter e de quem não tem.
Sei ser blasé diante da maior obra de arte
E no teatro, ao começar a interpretação,
Eu, zás!,
Me viro de costas para comentá-la
Com o sujeito de trás.

Falo alto na igreja
E baixinho diante dos que ouvem mal
Bocejo de tédio quando alguém me olha
E me visto sempre de maneira imprópria
Para a ocasião.

Quando me falam de livro
Respondo - "E as mulheres, como vão?"

Nunca ouço o que me dizem
Falo sempre de mim mesmo
Não respeito compromissos
E troco nomes a esmo.

Ah, ser chato é muito diferente
De suportar um chato
Suportar é quase doloroso
Mas sê-lo
É delicioso!

E o que é melhor, amigo,
Todos os chatos
Evitam tratar comigo.

03 de outubro de 1960.













segunda-feira, 6 de abril de 2015

Lembrete do Anjo a Fernando Sabino




Fernando Sabino, o Demônio é uma árvore frondosa cheia de frutos maduros e doces. O Demônio dá sombra aos caminhos fatigados, o Demônio, Fernando Sabino, dessedenta os que têm sede e dá de comer a quem tem fome. O demônio é uma romã fresca e saborosa depois do sol e do cansaço. Deus, Fernando Sabino, é uma galhada seca e magra, onde os homens sangram as mãos para nada. Uma caveira no meio do pé da estrada é Deus, Fernando Sabino. Deus é um osso duro de roer. Deus, Fernando Sabino, é uma fieira de dentes amarelos enfiados como em colar e passado no colo de um esqueleto esquecido de si mesmo. Fernando Sabino, o Demônio é uma macieira, o Demônio é alto, louro, simpático, tem olhos azuis e fuma cigarros americanos. Fernando Sabino, o Demônio tem poltronas, Fernando Sabino. O Demônio toma chá com torradas em varandas no flanco esquerdo e no flanco direito. Deus é cáustico e sem alpendre. Deus é uma caveira: PERIGO!

Otto Lara Resende
Rio, 24 de outubro de 1954
Noite


quarta-feira, 1 de abril de 2015

O paraíso são os outros

Um dia, eu e essa pessoa desconhecida vamos nos encontrar por algum motivo, e uma intuição talvez nos diga que chegamos à vida um do outro. Eu não acredito sempre nisso. Mas não posso deixar de estar atenta. De todo modo, sou assim mesmo: fico atenta a toda a gente. Gosto de olhar discretamente. Confesso.

Imagino a vida dos outros. Não é por cobiça. É por vontade que dê certo. Por exemplo, vejo alguém sem cabelo e invento que há gente que só gosta de homens carecas, para que ser careca seja uma vantagem ou, pelo menos, desvantagem nenhuma.

Acho que invento a felicidade para compor todas as coisas e não haver preocupações desnecessárias. E inventar algo bom é melhor do que aceitarmos como definitiva uma realidade má qualquer. A felicidade também é estarmos preocupados só com aquilo que é importante. O importante é desenvolvermos coisas boas, das de pensar, sentir ou fazer.

Parte 10 do livro: "O paraíso são os outros".