quinta-feira, 31 de março de 2016

O Jardim do Diabo

Do Veríssimo

"Todos estes livro, todas essas histórias, todas estas ideias, todas estas palavras não significariam nada - nada! - se não fosse uma coisa. Você sabe o quê?" Não adiantou eu fazer "não" com a cabeça, ele não estava me olhando. "Uma coisa que dá sentido a tudo, uma coisa sem a qual as palavras são apenas manchas no papel, todas as histórias não passam de encantações e todas as ideias nascem mortas. O que é? Me diga, o que é?" Eu disse que não sabia. Ele baixou a voz, dramaticamente, e respondeu sua própria pergunta. "O pecado." Certo", disse eu, como se tivesse estendido e concordava sem hesitação. "O pecado!", gritou ele. "O que nos condena é o que nos salva. Ou, pelo menos, salva a nossa literatura." Ele sentou na sua poltrona preferida, que tinha o couro rachado. Estava, agora, falando sozinho. "Muitas vezes você vai ler um livro e sente que ali falta alguma coisa. Ideias, ótimas. Redação, perfeita. Erudição. Estilo. Tudo. Mas falta uma noção de pecado. Você sente que o autor reuniu todos os ingredientes mas esqueceu o principal. Quem não tem a convicção do pecado nunca fará a grande literatura. Você concorda?" "Certo", respondi, cem por cento de acordo. Ele pareceu se dar conta da minha idade e fez um adendo. "É possível fazer manjar branco sem a essência de coco?" "Impossível", concordei. Manjar branco era uma das paixões dele. Anos mais tarde concluí que ele mantinha a biblioteca como um ex-alcoólatra mantém uma adega bem estocada, para ter sempre à mão a magnitude da renúncia. Ou um vertiginoso que escolhe viver à beira do abismo, como um desafio. Depois descobri que aquela era a sua vida clandestina. Uma das suas vidas clandestinas. Eu o entendi depressa demais.


terça-feira, 29 de março de 2016

Contos de cães e maus lobos

Trecho de "Querido Monstro":

Porque nenhuma tristeza define obrigatoriamente o que podemos fazer no dia seguinte. No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos sempre optar por regressar à busca das ideias felizes.
Eu comecei pelos poemas de amor. Foi o melhor que me poderia acontecer.



segunda-feira, 28 de março de 2016

Toni Morrison e o Clube do Livro da Oprah

Acho que minha autora contemporânea favorita é a Toni Morrison e este, sem dúvida, é um dos melhores livros dela.

E viva o Clube do Livro da Oprah!



quarta-feira, 23 de março de 2016

Nelson Rodrigues

Trecho de "Ser para sempre fiel e morrer, um dia, com o ser amado". O Globo - 2 de janeiro de 1968.

Chamava-se Meireles. Meireles ou Marcondes? Não, não. Era Meireles mesmo. Pois o Meireles tinha uma namorada em cada esquina, noivas e esposas por toda a cidades. Muitos já insinuavam o vaticínio: - "Qualquer dia dão-lhe um tiro!" E o Meireles foi, talvez, o primeiro sujeito que ouvi falar em "amor livre". Certa vez houve uma festa na vizinhança; era batizado ou aniversário, não me lembro mais.

E o Meireles (ou seria Marcondes?), o Meireles estava lá e tomou conta da festa. Cercado de mocinhas, de senhoras, contou a própria vida. Confirmou que tinha uma paixão, ou várias, em cada bairro. Alguém lhe perguntou se não tinha vergonha. Abriu o riso: "Vergonha teria de ser homem de uma mulher só!" Naquele tempo as mulheres usavam leque (o movimento lépido ou lento do leque era de uma delicada voluptuosidade). E as presentes abanavam-se com mais angústia.

(Depois se soube que o Meireles tinha não só namoradas, mas filhos por toda a cidade). No fundo, no fundo, a audiência estava fascinada com esse descaro monumental. Ao sair, ainda disse: - "Qualquer um pode gostar de quinhentas ao mesmo tempo." Eu estava no aniversário, comendo mãe-benta. O Meireles foi, talvez, o primeiro cínico que conheci da vida real.

Depois que o Meireles saiu, um vizinho, já senhor, de olho grande e triste, disse apenas: - "É um canalha!" Aí está um ponto de exclamação que realmente o velho não usou. Dissera "canalha" sem ira, um "canalha" que saiu apenas informativo. Quanto a mim, nos meus sete anos, exatamente sete anos, tive uma náusea adulta.



segunda-feira, 21 de março de 2016

O título de livro mais criativo

Este é o tema do vídeo de ontem.

A gente tem tantos... mas acabou escolhendo um só cada uma.





sábado, 19 de março de 2016

Comédias da Vida Privada

Dia da Secretária. Este também teve uma origem curiosa. Segundo algumas versões, ele começou no Brasil, quando uma mulher descobriu na agenda do marido a seguinte inscrição: "Flores e bombons para a Bete. Mandar entregar no Motel".

- Quem é essa Bete? - perguntou a mulher com fingido desinteresse, sacudindo o marido pelo pescoço.
- Ora, quem é a Bete. É a Dona Elizabete, minha secretária. Você conhece ela!
- Conheço e sei que o aniversário dela já passou. Por que as flores e os bombons?
- Onde é que você viu isso?
- Na sua agenda.
- E você viu a data na agenda?
- O que é que tem a data?
- É o Dia da Secretária.
- Nunca ouvi falar.
- Foi recém-inventado - disse o marido, que tinha inventado naquele minuto.
- E o motel? Por que entregar no motel?
- A dona Elizabete está morando no motel, provisoriamente, até que terminem os reparos na casa dela.
- O que houve com a casa dela?
- Você não soube? Foi arrasada por uma manada de elefantes.
- Você espera que eu acredite nisso?!
- Meu bem, eu inventaria uma história destas?
- É, acho que não. Desculpe, querido.
- Está desculpada. Agora largue o meu pescoço.


terça-feira, 15 de março de 2016

Amós Oz

Trecho da palestra "Entre o certo e o certo" de 2002:

"Quando cunhei a expressão 'Faça a paz, não amor', eu não estava, é óbvio, pregando contra o amor. Mas sim, em certa medida, tentando acabar com a confusão amplamente difundida entre paz e amor e fraternidade e compaixão e perdão e concessão e assim por diante, que faz as pessoas pensarem que se elas apenas largassem suas armas, o mundo no mesmo instante se tornaria um lugar maravilhoso, adorável. Pessoalmente, acredito que o amor é um artigo raro. Creio que um ser humano, pelo menos segundo minha experiência, pode amar dez pessoas. Se for muito generoso poderá amar vinte pessoas. Um ser humano sortudo, muito felizardo pode até mesmo ser amado por dez pessoas. Se for extraordinariamente sortudo, pode ser amado por vinte pessoas. Se alguém me disser que ama a América Latina, ou que ama o Terceiro Mundo, ou que ama a humanidade, isso é muito vago para ser significativo. Como lamentava uma canção popular muitos anos atrás, 'Não há amor suficiente no mundo'. Não creio que o amor seja a virtude com a qual serão resolvidos os problemas internacionais. Precisamos de outras virtudes. Carecemos de senso de justiça, mas também de senso comum, necessitamos de imaginação, de uma profunda habilidade de imaginar o outro, às vezes nos pondo no lugar dele."


Obs - acho que o livro tem alguns problemas de tradução. Mas vale. 

segunda-feira, 14 de março de 2016

Modo de amar

prometo ser-te fiel se mo fores
também. não é certo que mo venhas a
ser. por isso, já to perdoo

prefiro partir assim para o resto da
vida. assim, como os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade

não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade

que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse. e depois, pergunto,

vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro

e não esperar mais nada senão a
verdade. a decadente verdade que
chegará já depois dos primeiros beijos


terça-feira, 8 de março de 2016

Sempre minha poeta - Alice Ruiz S

dias e dias
espio palavras
persigo letras

com sorte
saco mais rápido 
pego todas distraídas

tiro as que riem
as que conversam


as outras
vadiam




domingo, 6 de março de 2016

Ziraldo e Flicts

No programa do Paraísos de Papel dessa semana falamos do nosso Ziraldo favorito. O meu é e sempre será FLICTS.

Aqui o vídeo.

E aqui um trechinho dessa coisa linda:

Tudo no mundo tem cor
tudo no mundo é
Azul
Cor-de-rosa
ou Furta-cor
é Vermelho ou
Amarelo
quase tudo tem seu tom
Roxo
Violeta ou Lilás
Mas
não existe no mundo
nada que seja Flicts
- nem a sua solidão 0
Flicts nunca teve par
nunca teve um lugarzinho
num espaço bicolor
(e tricolor muito menos
- pois três sempre foi demais)
Não
Não existe no mundo
nada que seja Flicts.


sexta-feira, 4 de março de 2016

Os dragões não conhecem o paraíso

Trecho do conto: Saudade de Audrey Hepburn (nova história embaçada)

Apertou o livro entre dedos subitamente frios, depois colocou-o no colo para ajoelhar-se e estender as mãos em direção ao fogo. Eu parado na porta às quatro da manhã. Você indo embora. Eu me perdendo então desamparado entre cinzeiros cheios e garrafas vazias. Você indo embora. Eu indeciso entre beber um pouco mais ou procurar uma beata em plena devastação ou lavar copos bater sofás guardar discos mastigar algum verso adoçando o inevitável amargo despertar para depois deitar partir morrer dormir sonhar quem sabe. Você indo embora. Acordar na manhã seguinte com gosto de corrimão de escada na boca: mais frustração que ressaca, desgosto generalizado que aspirina alguma cura. Tocaria o telefone? Você indo embora, fotograma repetido. Na montagem, intercalar. Você indo embora você indo embora.



quinta-feira, 3 de março de 2016

Ana Cristina

Psicografia

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto