quinta-feira, 30 de julho de 2015

Fiction can poison the mind



In your world, you were supposed to care, you were supposed to show an interest in all realms of human knowledge, to study math as well as penmanship, music as well as science and your much-admired Holmes was saying no, some things were more important than others, and the unimportant things should be tossed away and forgotten, since they served no purpose except to clutter one's mind with useless bits of nothing. Some years later, when you found yourself losing interest in science and math, you recalled Holmes's words - and used them to defend your indifference to those subjects. An idiotic position, no doubt, but you nevertheless embraced it. Further proof, perhaps, that fiction, can indeed, poison the mind.


domingo, 26 de julho de 2015

Cuecas


Giselda confidenciou a Martô, sua melhor amiga, que nada no noticiário recente a abalara mais do que a volta à moda da cueca samba-canção.

- Não sei se você entende - disse Giselda.
- Eu entendo - disse Martô.
- O Júlio só usa cueca samba-canção - disse Giselda.
- Eu sei - disse Martô.
- E isso me dava uma certa segurança. Entende?

Martô entendia. Era o fim da tarde. As duas tinham tirado os sapatos e estavam com os pés sobre a mesa do centro, na sala da Giselda. Jovens senhoras.

- Bobagem, claro - disse Giselda. - Mas, entende?
- Perfeitamente - disse Martô.
- Eram, assim, como um símbolo. As cuecas do Júlio. De estabilidade. De bom senso. Até de certa resignação diante da vida. Mas no bom sentido.
- Claro.
- Imagina se um dia ele me aparece de Zorba. De sunga. Colorida. Sinal de quê?
- Outra.
- Isso. Ou outras.
- Podes crer.
- Mas não. Ele insistia nas cuecas samba-canção. Até tinha horror a novas. Queria sempre as mesmas. Rasgadas, não importava. Você podia desconfiar de alguma coisa de um homem assim? Vou dizer uma coisa. Cueca é caráter.
- Quem vê cueca vê coração.
- Você acha que estou brincando?
- O que é isso? Eu estou concordando com você.
- Eu insistia pra ele trocar de cuecas. Mas no fundo, no fundo gostava que ele fosse assim. E agora isso...
- O quê?
- As cuecas samba-canção na moda de novo. Entende?
- Anrrã.
- Ele não vai mais ter vergonha de tirar as calças na frente de outra.
- Ou outras.
- Ou outras. Pode até dizer que não tem culpa. Não foi ele que mudou, foi a moda. Continua o mesmo homem sério e conservador. Não foi ele que resolveu sair para a vida, a vida é que veio atrás dele. Vou ter que ficar de olho. Agora sim. Olho vivo. Ou eu estou exagerando?
- Não, não.

Depois que Martô saiu, Giselda foi tratar do jantar das crianças e do Júlio. Só horas mais tarde, vendo o filme na TV com o Júlio roncando ao seu lado, repassando a conversa naquela tarde, é que se deu conta. Telefonou para a Martô.

- Martô?
- O que é, Gi?
- O que é que você quis dizer com "eu sei"?!


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mais Desumanização


Ríamos muito. No interior das baleias não se poderia ler, estaria às escuras. Funcionaria por instinto, sem instrução. A minha irmã achava que o interior das baleias devia ser tão grande que talvez fosse habitado por marinheiros que naufragaram e encontraram esconderijo ali. Pendurariam umas gambiarras e encostar-se-iam num bocado de pele para dormirem. Um dia, um desses pescadores incríveis haveria de nos levar a solução para a espera.

Quando for grande, Halla, não quero ser cozinheira das baleias. Não vou ficar ali encalhada a fazer doces para que elas se consolem. Quando for grande, quero ser de outra maneira. Quero ser longe. Eu respondia: ninguém é longe. As pessoas são sempre perto de alguma coisa e perto delas mesmas. A minha irmã dizia: são. Algumas pessoas são longe. Quando for grande quero ser longe. E eu respondia: eu acho que quero ser professora.




terça-feira, 21 de julho de 2015

Da saudade

Mario Quintana.

Do "Caderno H"

"A saudade que dói mais fundo - e irremediavelmente - é a saudade que temos de nós."


sexta-feira, 17 de julho de 2015

sou cachoeira



sou cachoeira
fúria de água insistente
esmurrando pedra morro paciente
firme na contra-corrente

deixar a vida passar
mostra que ser resistente
de verdade
é nem questionar

não interessam as intenções do rio

jorra
sempre
morro
abaixo
uma imensa
sensação

de vazio

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Por um lindésimo de segundo

tudo em mim
anda a mil
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas.


sexta-feira, 10 de julho de 2015

Neste interlúnio



Neste interlúnio
Sou um dilúvio ou me afogo.
E entre espectros que comprimem,
Nada se cumpre,
O destino esfarela.
De querela e farinha se ergue um olho.
As vozes despetalam,
Os períodos se abrandam,
Orações inteiras lentas se consomem,
Em poços há sumiço de palavras moucas.
Neste interlúnio
Sou fagulha ou hulha inerte.
Enorme berne entra corpo adentro,
Entre os dentes, carne.
Ante os dentes, carne.
Arde o ente e cospe,
Cuspe inútil invadindo espaço.
Moléculas moles coleando,
Víboras vagas se rimando,
Poetas quietos entreolhando.
Coisas coisas que falecem.
Neste interlúnio.
Sou coisa ou poeta.

agosto/68


quarta-feira, 8 de julho de 2015

Hilda Hilst



XXXIII


Se te pronuncio
Retomo um Paraíso
Onde a luz se faz dor
e gelo a claridade.
Se te pronuncio
É esplendor a treva
E as sombras ao redor
São turquesas e sóis
Depois de um mar de perdas.

Vigio
Esta sonoridade dos avessos.
Que se desfaça o fascínio do poema
Que eu seja Esquecimento
E emudeça.



Cléberson: a gente gosta e entende de literatura sim.

domingo, 5 de julho de 2015

e todos os dias

e todos os dias
trazer à tona meu melhor rosto
para que os outros não se assustem
para que os outros não se espantem
para que eu não me dane e sangre

e todos os dias
depurar o melhor de mim
e não deixar nenhum espinho à tona
e não deixar nenhuma dor à mostra
e não deixar nenhuma cicatriz visível
combater a voz rouca com gargarejo de salmoura
esconder as olheiras com óculos escuros
e dizer coisas, mesmo sem sentido,
o tempo todo, dizer coisas e mais coisas e outras coisas
para que o silêncio não agrida nem pareça fundo
como um poço
para que o poço não assuste

e todos os dias
não deixar a sede vencer a garganta
e não deixar o gesto se estender do braço
e não gritar, não gritar nem chorar,
nem utilizar palavras ásperas
(dance, dance, dance
e não se esqueça de sorrir)

e todos os dias
e todos os dias
controlar o ridículo
para não confessar amores inconfessáveis
delimitar o cansaço
mastigar a solidão
tomar um ônibus
e voltar sozinho para casa, em passo lento
ou então beber num bar qualquer
qualquer bebida, qualquer companhia,
beber, beber, beber, beber
e não esquecer nada.

e hoje como ontem
todos os dias
um dia depois do outro
amanhã eu sei
amanhã também.



sábado, 4 de julho de 2015

Herberto Helder



folhas soltas, cadernos, livros, montões inexplicáveis, e cada
vez que lhes toco fica tudo mais caótico e não
descubro nada,
às vezes procuro apenas uma palavra que algures na desordem estava certa,
nos âmagos e umbigos da alma:
brilhava,
uma vez encontrei um relâmpago, e quase morri de
assombro,
quase via alguma coisa nos jardins de outro mundo,
quase via o fogo que nascia,
quase irrompeu um poema quase sem uma palavra errada,
quase me tocaram,
quase nasci ali mesmo nesse ápice da terra inteira,
quase que a mão esquerda se moveu dentro da desordem,
quase tinha pegado fogo mas já estava fora,
quase todo eu era matéria-prima,
mas de repente não,
de repente as coisas colocadas regressavam
e entre elas, dentro, sentado, eu apenas escrevia isto,
caótico como antes era:
livros, folhas soltas, cadernos, etc.,
este pequeno poema que deixava tudo revôlto como dantes
era,
e eu não tocava em nada e nada me tocara,
e nada se tocara entre si,
e eu morria aos poucos como era costume na época




quarta-feira, 1 de julho de 2015

Carta dispersa à beira de um não-ser



Trecho do poema do Caio:


Amigo,
escuta bem porque calar não calo,
porque até o fim me cumprirei no que consome,
escuta bem, te peço claramente:
essas noites de roxo e de procura,
essa sede nas mãos, tão disfarçada,
esse ácido que, bem sei, te esmaga
como a mim próprio dissolve e mata
(não, não há remédio contra sermos sós)
- é tudo tão duro amigo, amado,
e não compreendem o meu querer calado e pouco:
não mais que isso - um fundo canto
e a mão de qualquer amigo perdida dentro da minha.
(Um anjo negro de desvairadas órbitas
atrás da minha andança descompassada: ah
te daria tanto se querer quisesses.)