Na áltima página do "I'll take you there" de Wally Lamb tem a seguinte citação da Louisa May Alcott
"Far away there in the sunshine are my highest aspirations. I may not reach them but I can look up and see their beauty, believe in them, and try to follow where they lead."
Tudo de bom que já foi dito sobre Walt Whitman e sua obra "Folhas da Relva" eu concordo. Por isso o nome deste humilde bloguinho que fala sobre literatura é uma homenagem ao grande poeta que, como disse Borges: "toma e não diz a ninguém a infinita decisão de ser todos os homens e escrever um livro que seja todos".
domingo, 25 de dezembro de 2016
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
Flesh and blood
Achei um livro do Michael Cunningam que eu não tinha lido: Flesh and Blood. Lindo.
E na página 142
Tranca's mother had left everything: a husband, petunia beds, a blue-shuttered house on Zoe's street. She'd taken Trancas to live with her in drunken renunciation until she found the hard kernel of nothing from which she could start again. She was drinking her way to it, smoking Chesterfields two at a time. She was watching television, waiting for the day she'd wasted so many hours that the hours themselves would be ground down, the days indistinguishable from the nights, and she'd be able to look for a different self amid the wreckage. She wanted to drop acid with her daughter, but Trancas claimed she didn't know where to get any.
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Versos do prisioneiro (8)
Noturno sou,
mas sem noite.
A grade já não mais
me prende a morada:
a treva sou eu
o escuro morreu.
Eis o meu segredo:
todas as noites
me deito num livro
para em outra vida desaguar.
Rio escapando da margem,
margem escapando um rio.
Já quis riqueza.
Roubei,
aluguei a alma
alarguei tendões
para abarcar posses.
Agora,
meu ouro é a palavra.
Agora, a poesia
á a minha única visita de família.
E quando me notam,
noturno no canto mais escuro,
não dão conta
da minha silenciosa evasão
nem escutam
o tilintar das chaves em minha mão.
Presos, agora,
apenas os que não entram
em meu novo cárcere.
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Meu Michel
O tempo e a memória preservam especialmente as palavras banais. Favorecem-nas com sua compaixão. Estendem sobre elas uma penumbra piedosa.
Eu me apego à memória e às palavras como uma pessoa que se agarra a um parapeito, num lugar alto.
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
Final de "Breve Memória"
Solidões. E este ser maior
de que te falo, certa ânsia
e esta caminhada. E esta breve memória
que te entrego.
Não te queria só.
Nem macerado. Mas se este olho
que olha,
olha correto
(amigo
amado)
mais te quero assim
entristecido
do que em riso liberto
e distraído.
Bem mais te quero
endurecido
como a face minha.
Bem mais te quero
no gesto predisposto
à luta
do que no gesto ameno,
repousado.
Me fiz em pedra.
E assim é que te falo
desta vontade lenta
desta mansa espera.
Mas não me canso.
E se é feito de rudezas
minha voz,
um dia não será.
Tenho certeza.
13 de outubro de 1969
Casa do Sol, Campinas.
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
O alfabeto no parque
Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda da vovó que nunca existiu
porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor.
Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
pessoas dizendo entre soluços:
'Não aguento mais.'
Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominada mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa a fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.
Imagine que uma dita roda-gigante
propicia passeios e vertigens entre
luzes, música, namorados em êxtase.
Como é bom! De um lado os rapazes,
do outro as moças, eu louca pra casar
e dormir com meu marido no quartinho
de uma casa antiga com soalho de tábua.
Não há como não pensar na morte,
entre tantas delícias, querer ser eterno.
Sou alegre e sou triste meio a meio.
Levas tudo a peito, diz minha mãe,
dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.
A mãe não sabe, cinema é como dizia a avó:
'cinema é gente passando.
Viu uma vez, viu todas.'
Com perdão da palavra, quero cair na vida.
Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde...
Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa.
Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda da vovó que nunca existiu
porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor.
Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
pessoas dizendo entre soluços:
'Não aguento mais.'
Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominada mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa a fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.
Imagine que uma dita roda-gigante
propicia passeios e vertigens entre
luzes, música, namorados em êxtase.
Como é bom! De um lado os rapazes,
do outro as moças, eu louca pra casar
e dormir com meu marido no quartinho
de uma casa antiga com soalho de tábua.
Não há como não pensar na morte,
entre tantas delícias, querer ser eterno.
Sou alegre e sou triste meio a meio.
Levas tudo a peito, diz minha mãe,
dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.
A mãe não sabe, cinema é como dizia a avó:
'cinema é gente passando.
Viu uma vez, viu todas.'
Com perdão da palavra, quero cair na vida.
Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde...
Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa.
sábado, 8 de outubro de 2016
segunda-feira, 3 de outubro de 2016
Tardio
Quando quis ser fruto
fui fome,
não mais do que areia
de um chão sem cio.
Quando sonhei ser pano
fui agulha.
E morri no sono do gesto
de enrolar o fio.
Quando aprendi a ser poente
já não havia mais céu.
Quando quis anoitecer
tudo era luz.
E assim me condeno
em livre vício:
no mais derradeiro
eu só vislumbro um início.
fui fome,
não mais do que areia
de um chão sem cio.
Quando sonhei ser pano
fui agulha.
E morri no sono do gesto
de enrolar o fio.
Quando aprendi a ser poente
já não havia mais céu.
Quando quis anoitecer
tudo era luz.
E assim me condeno
em livre vício:
no mais derradeiro
eu só vislumbro um início.
quinta-feira, 29 de setembro de 2016
Veríssimas
O mestre de sempre.
Burrice - Deus nos livre da burrice alheia, que a nossa é pitoresca
e
Ser superior - Existe um ser superior que dirige nossas vidas, mas ninguém entende como ele passou no psicotécnico.
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
Valter
Trecho final de "A princesa com alma de galinha".
O rei, sem outra explicação e sem hesitar, sorriu e pediu que toda a gente aplaudisse a princesa herdeira. Havia um milagre só na sua esperança. Era, afinal, apenas isso. Um milagre guardado na esperança. E quem guardava a esperança manisfestava uma enorme inteligência. Quem sabe esperar é dono de um tesouro. A princesa sorriu.
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
Os dragões não conhecem o paraíso
Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.
Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta da agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande chaga.
"Os ladrões não conhecem o paraíso". Contos. Página 142.
segunda-feira, 19 de setembro de 2016
Ziraldo
Livro novo do Ziraldo. Lindo. Lindo.
Menina
quando acha
que tem razão
ou mesmo quando não acha
tem os pezinhos no chão.
"Porque eu nasci assim",
ela afirma, categórica.
Mas até que é divertido
(quando não é com você),
vê-la lutar, com denodo,
por aquilo em que ela crê.
E tem lá sua beleza
saber que a menina é
uma força da natureza
(quando descobre que é).
Até que ela é valente
quando precisa provar
que tem coragem bastante
para derrubar uma rainha
cheia de fúria e maldade que
vive em seus pesadelos.
É bom ter essa coragem
pra na hora de acordar
sonhar que tudo é verdade.
Menina
quando acha
que tem razão
ou mesmo quando não acha
tem os pezinhos no chão.
"Porque eu nasci assim",
ela afirma, categórica.
Mas até que é divertido
(quando não é com você),
vê-la lutar, com denodo,
por aquilo em que ela crê.
E tem lá sua beleza
saber que a menina é
uma força da natureza
(quando descobre que é).
Até que ela é valente
quando precisa provar
que tem coragem bastante
para derrubar uma rainha
cheia de fúria e maldade que
vive em seus pesadelos.
É bom ter essa coragem
pra na hora de acordar
sonhar que tudo é verdade.
domingo, 18 de setembro de 2016
Poesia de Mia Couto
A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
segunda-feira, 12 de setembro de 2016
Voltando com Oliver Sacks
Trecho de Mercúrio (do livro: Gratidão).
W. H. Auden vivia me dizendo que achava que iria viver até os oitenta e então "se mandar" (viveu só até os 67). Lá se vão quarenta anos desde que ele morreu, mas ainda sonho com ele, com meus pais e com ex-pacientes. Todos se foram há muito tempo, mas são amados e importantes na minha vida.
Aos oitenta paira o espectro da demência ou do derrame. Um terço dos meus contemporâneos está morto, e vários outros, com graves problemas mentais ou físicos, vivem presos numa existência trágica e mínima. Aos oitenta as marcas da decadência são demasiado visíveis. Nossas reações são um tanto mais lentas, os nomes nos fogem mais amiúde, e cumpre administrar melhor as energias, mas ainda assim é possível nos sentirmos muitas vezes cheios de vigor e nem um pouco "velhos". Quem sabe, com sorte, eu consiga seguir, mais ou menos intacto, por mais alguns anos e me seja concedida a liberdade para continuar a amar e trabalhar, as duas coisas mais importantes na vida, como garantiu Freud.
Quando chegar a minha hora, espero que eu possa morrer na ativa, como Francis Crick. Quando lhe informaram que seu câncer de cólon tinha voltado, de início ele não disse nada, simplesmente olhou ao longe por um minuto, depois retomou o que vinha pensando. Ao lhe perguntarem sobre seu diagnóstico algumas semanas depois, ele respondeu: "Tudo o que tem um começo deve ter um fim". Morreu aos 88 anos, ainda totalmente comprometido com seu trabalho mais criativo.
Meu pai, que viveu até os 94 anos, costumava dizer que seus oitenta anos tinham sido uma das décadas mais agradáveis de sua vida. Ele sentiu, como começo a sentir, não um encolhimento, e sim uma expansão da vida mental e da perspectiva. Nesta altura já tivemos uma longa experiência de vida, não só da nossa, mas também da de outros. Já vimos triunfos e tragédias, altos e baixos, revoluções e guerras, grandes realizações e profundas ambiguidades também. Já assistimos notáveis teorias ascenderem e acabarem derrubadas por fatos teimosos. Somos mais conscientes da transitoriedade e, talvez, da beleza. Aos oitenta podemos relembrar um vasto panorama e ter um senso claro de história vivida impossível aos mais novos. Posso imaginar, sentir nos ossos, o que é um século, coisa que não podia fazer aos quarenta ou sessenta. Não penso na velhice como uma fase cada vez mais penosa que é preciso suportar e levar o melhor possível, mas como um período de liberdade e tempo descomprometido, sem as infundadas urgências de outrora, livre para explorar o que eu quiser e para amarrar os pensamentos e sentimentos de toda uma vida.
Não vejo a hora de fazer oitenta anos.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016
Millôr Definitivo
Uma delícia de livro. Abra, escolha uma letra, uma palavra, leia um pouquinho. Faça isso sempre.
CANALHICE
"Se canalhice matasse ia ter muita gente aí botando quatro pontes de safena no caráter"
CHATO
"Chato é o sujeito que, assim que é apresentado, começa a fazer o comercial de si mesmo"
ABANDONO
"No aeroporto cheio / Eu filo / O adeus alheio"
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
8 anos
Estamos aqui, na literatura, há 8 anos. Com interrupções já que a vida não é fácil. Mas com a cabeça nos livros sempre.
domingo, 31 de julho de 2016
Oprah
Are you listening to your life? Short story de Parker J. Palmer, publicada no livro abaixo.
"Accepting this birthright gift of self turns out to be even more demanding than attempting to become someone else. I've sometimes responded to that demand by ignoring the gift or hiding it or fleeing from it, and I don't think I'm alone. An old Hasidic tale reveals both the universal tendency to want to be someone else and the importance of becoming one's self: Rabbi Zusya, when he was an old man, said: "In the coming world, they will not ask me, 'Why were you not Moses? 'They will ask me, 'Why were you not Zusya?'.
domingo, 24 de julho de 2016
Mais Riobaldo
Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.
terça-feira, 19 de julho de 2016
Uma ciência
Já falei isso dezenas, centenas de vezes. Mas falo de novo: se tem algum cronista como Veríssimo, eu não conheço.
Decidiram fazer um churrasco para as famílias se conhecerem. Do lado da Bea havia seu pai, sua mãe, um irmão mais moço e uma tia solteira. Do lado do noivo, Carlos Alberto, a mãe viúva, duas irmãs mais velhas, sendo uma com uma namorada, e um irmão com a mulher e dois filhos menores. O churrasco seria na casa da Bea, que tinha um pátio grande com churrasqueira. O Carlos Alberto se prontificou: seria o assador.
Acertaram a logística do encontro. Os donos da casa forneceriam as saladas e a cerveja, os visitantes trariam a carne, a sobremesa e os refrigerantes, inclusive zeros para quem estivesse controlando a glicose. E o assador. Tudo transcorreu bem. Uma das crianças ralou o joelho e, segundo o consenso geral, exagerou um pouco nos gritos para chamar atenção, a tia solteira da Bea bebeu demais e caiu da cadeira, mas fora isso, tudo bem. Todos se entenderam, se divertiram - a namorada da irmã mais velha do Carlos Alberto tinha um repertório inesgotável de anedotas - e conversaram bastante. Menos o pai da Bea, o seu Vicente, que passou todo o churrasco emburrado. Sem dizer uma palavra.
Naquela noite Bea perguntou aos pais se tinham gostado do Carlos Alberto. Seu Vicente e dona Nininha se entreolharam.
- Sei não... - disse o seu Vicente.
Bea se surpreendeu. "Sei não" por quê?
- Para começar - disse seu Vicente - , ele botou a carne em espeto baixo com o fogo mais alto. Não esperou o carvão virar brasa. Vi que ia ser um desastre quando os salsichões vieram queimados.
- Ora, papai. O...
- Outra coisa. Ele usou salmoura na carne, em vez de sal grosso. Ninguém mais usa salmoura. A salmoura foi usada em churrasco no Brasil pela última vez na administração do Washington Luiz.
- Papai, você está dando importância demais ao...
- Tem mais! Ele botou a picanha com a gordura pra cima. O certo, o clássico, é com a gordura para baixo. E a costela ele botou com o osso para cima!
- Está bem, papai. Eu prometo que o Carlos Alberto nunca mais fará um churrasco para vocês.
- Não se trata disso, minha filha.
Não se tratava só daquilo. O importante era o que aquilo revelava sobre o caráter do assador. Alguém que se apresenta como assador sem ter a mínima ideia de como se assa não é apenas pretensioso é irresponsável. É um estelionatário. Demonstra desonestidade, arrogância e descaso pelos outros.
- O churrasco é uma ciência, minha filha. Não é para qualquer impostor.
- Mas papai...
- E o que ele inventou? Corações de galinha num espeto intercalados com pedaços de abacaxi. Não há hipótese de eu deixar minha filha casar com alguém que intercala corações de galinha com pedaços de abacaxi!
- E as sobremesas não estavam grande coisa - acrescentou dona Nininha.
O casamento foi adiado. Bea disse ao Carlos Alberto que precisava pensar.
terça-feira, 12 de julho de 2016
Mais Valter
Do conto "A princesa com alma de galinha":
Quem vai para longe vive na casa do esquecimento. Se não puderem ver ou tocar, ao menos que se saiba que estou aqui e que penso na felicidade deles como se faz num desejo de boa sorte. Talvez se salvem as pessoas todas só porque o desejamos quando o desejamos tanto. Mesmo que elas não nos entendam, mesmo que ninguém nos entenda. Talvez o desejo seja um aviso para que as coisas boas aconteçam sem precisarem de explicações complexas.
sexta-feira, 17 de junho de 2016
Amós Oz e "Meu Michel"
O maior desejo de seu pai era que Michel se tornasse professor em Jerusalém, pois seu falecido avô, o pai de seu pai, fora professor de ciências naturais no Seminário Hebreu para Professores, em Grodno. Professor célebre. Seria bonito, na opinião do pai de Michel, se a corrente passasse de geração em geração.
Eu disse: "Família não é corrida de revezamento e profissão não é tocha."
Michel disse: "Mas eu não posso dizer isso a meu pai, que é um homem sensível e usa expressões hebraicas como antigamente se usavam serviços de frágil porcelana. Agora fale você de sua família."
sexta-feira, 10 de junho de 2016
Poesia do Caio
Ninguém saberá da secura de nossos olhos
da dureza de nossa boca ninguém saberá
do fio das unhas da dor no dente
do sangue guardado no fundo da gaveta
ninguém adivinhará os jardins atrás do muro fechado
ninguém quebrará o ferro do portão
ninguém violentará o secreto
ninguém te tocará profundamente
ninguém te saberá
ninguém.
Por isso olhamos as nuvens
sentados ao vento que não sopra
enquanto os balanços rangem
os rádios cantam
e a rua à nossa frente
é tão intocável como um quadro
pintado por outro.
Por isso olhamos em volta
e o que se passa além de nossa {palavra ileg.}
não nos soluciona
(ninguém sabe
ninguém saberá).
O caule quebrado do girassol
o livro de Toynbee sobre os degraus
a caneta riscando o papel
as nuvens
a tarde
a rua
o medo.
20 de dezembro de 1975
terça-feira, 31 de maio de 2016
Fanatismo Comparado
"Eu chamei a mim mesmo de um especialista em fanatismo comparado. Não é uma piada. Se vocês alguma vez ouvirem falar de uma escola ou universidade que crie um departamento de fanatismo comparado, já estou pleitando um lugar como professor. Como um ex-hierosolimita, como um fanático recuperado, sinto que sou totalmente qualificado para esse emprego. Talvez já seja tempo de toda escola, toda universidade, manter pelo menos alguns cursos de fanatismo comparado, porque ele está em toda parte.
Não me refiro somente às manifestações óbvias de fundamentalismo e intransigência. Não me refiro apenas a esses fanáticos óbvios, os que vemos na televisão, em lugares onde multidões histéricas agitam os punhos na direção das câmeras enquanto gritam frases de efeito em línguas que não entendemos. Não, o fanatismo está em quase toda parte, e suas formas mais tranquilas, mais civilizadas estão presentes ao nosso redor e talvez também dentro de nós mesmos. Conheço antitabagistas que queimariam você vivo por acender um cigarro perto deles! Conheço vegetarianos que comeriam você vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns deles meus colegas no Movimento Israelense pela Paz, que gostariam de dar um tiro na minha cabeça só porque eu defendo uma estratégia um pouco diferente de como chegar à paz com os palestinos. Com isso não estou dizendo, é claro, que qualquer um que erga a voz contra qualquer coisa seja um fanático. Certamente não estou sugerindo que alguém com opiniões sólidas seja um fanático. Digo que a semente do fanatismo reside sempre numa autojustificativa sem concessões, uma praga com muitos séculos de existência."
quinta-feira, 26 de maio de 2016
Cantiga para ninar insones
Quieta, carência minha:
não pinceles assim, em ouro,
o que no barro é feito. Não
desvendes metáforas complexas
onde o verbo é quase sempre raso
e pouco. Não, não te atices
assim, toda a fim, outra vez,
de elaborar torturas acetinadas
sobre mesquinharias de algodão.
Não te bastou, então, toda essa estrada?
Quieta, quieta: silencia.
Como as tevês antigas, disciplinada,
procura ver em preto, em branco,
em calmaria. Não assim, despudorada,
policrômica, out-dooresca. Respira,
respira fundo, conta até dez.
Não telefone. Não fantasia.
Sossega. Chega de enganos.
Recolhe ardores indiscriminados,
os arrebatamentos, controla.
Controla-te, por favor, carência minha,
pois urge sublimar a ânsia do sublime.
Tenta, tenta. Ou toma um mogadom,
um valium, trinta miligramas (e três,
se for preciso). E dorme, dorme
bruta, dorme profundamente, dorme
sem sonho algum
enquanto chove dentro e fora a chuva fria
Amanhã tem mais.
Maio de 1982.
não pinceles assim, em ouro,
o que no barro é feito. Não
desvendes metáforas complexas
onde o verbo é quase sempre raso
e pouco. Não, não te atices
assim, toda a fim, outra vez,
de elaborar torturas acetinadas
sobre mesquinharias de algodão.
Não te bastou, então, toda essa estrada?
Quieta, quieta: silencia.
Como as tevês antigas, disciplinada,
procura ver em preto, em branco,
em calmaria. Não assim, despudorada,
policrômica, out-dooresca. Respira,
respira fundo, conta até dez.
Não telefone. Não fantasia.
Sossega. Chega de enganos.
Recolhe ardores indiscriminados,
os arrebatamentos, controla.
Controla-te, por favor, carência minha,
pois urge sublimar a ânsia do sublime.
Tenta, tenta. Ou toma um mogadom,
um valium, trinta miligramas (e três,
se for preciso). E dorme, dorme
bruta, dorme profundamente, dorme
sem sonho algum
enquanto chove dentro e fora a chuva fria
Amanhã tem mais.
Maio de 1982.
sábado, 21 de maio de 2016
Bom dia para nascer
Trecho de crônica de 18 de agosto de 1991
Desamarraram o bode
Nada como um dia após o outro. Enfim começaram a tirar o bode de nosso casebre, ainda que aos poucos, em suaves prestações mensais. Ando com uma inclinação zoológica, que nada tem a ver com o modismo ecológico. Tampouco é aborrecimento com a natureza humana. Sou um temperamento indulgente, talvez porque precise de indulgência. De misericórdia, sim. A ser rigoroso, procuro ser comigo mesmo. Como lá dizia o outro, moral para vigiar, basta a minha. O que já me dá muito trabalho e pouco sucesso.
O bicho do dia para mim é o bode. Não o expiatório, que purga a culpa de todos. Mas sim aquele bode da anedota judaica. O pobre-diabo foi se queixar ao rabino. Morava numa lata de sardinha apertada e sem conforto. Pior do que buraco de favela. Só não era pior do que quarto de empregada doméstica em apartamento novinho em folha. E tinha a obrigação debaixo do mesmo teto. Filha, filho, afilhado, até sogra. Vocês sabem: o rabino mandou botar um bode no cubículo.
Passado um mês, tirasse o bode e veria o conforto se instalar em casa. Bode tem vários sentidos.
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Poema do Caio
16 de dezembro de 1980
Amor não foi, mas invenção
pois te queria de ouro
enquanto eras de barro, águas,
tintura fria, verniz.
De ouro fui eu, o meu invento
em diamantes, rubis, águas-marinhas
engastadas no meu corpo
que nunca foi tão belo. E tão inútil.
Não sei se foi o tempo,
o vento norte, o sol impiedoso dos verões
que pouca a pouco te partiu em cacos
A chuva te desfez. Restou lama.
De mim, um brilho falso. Imitação.
Quinquilharias.
Amor não foi, mas invenção
pois te queria de ouro
enquanto eras de barro, águas,
tintura fria, verniz.
De ouro fui eu, o meu invento
em diamantes, rubis, águas-marinhas
engastadas no meu corpo
que nunca foi tão belo. E tão inútil.
Não sei se foi o tempo,
o vento norte, o sol impiedoso dos verões
que pouca a pouco te partiu em cacos
A chuva te desfez. Restou lama.
De mim, um brilho falso. Imitação.
Quinquilharias.
segunda-feira, 16 de maio de 2016
Como curar um fanático
Trecho de palestra de 2002.
Há muitos anos, quando eu ainda era criança, minha sábia avó me explicou em palavras muito simples a diferença entre um judeu e um cristão - não entre um judeu e um muçulmano, mas entre um judeu e um cristão: "Veja só", ela disse, "os cristãos acreditam que o Messias já esteve uma vez aqui e certamente voltará um dia. Os judeus afirmam que o Messias ainda está por vir. Por causa disso, houve tanta raiva, perseguição, derramamento de sangue, ódio... Por quê?". Ela disse: "Por que cada um não pode simplesmente esperar para ver? Se o Messias chegar dizendo: 'Olá, é um prazer revê-los', os judeus vão ter de admitir e reconhecer o fato. Se, por outro lado, o Messias chegar dizendo: 'Como vão, é um prazer conhecê-los', todo o mundo cristão terá de se desculpar com os judeus. Entre o agora e o então", disse minha erudita avó, "simplesmente viva e deixe viver." Ela era definitivamente imune ao fanatismo. Sabia o segredo de viver em situações em aberto, com conflitos não resolvidos, com a alteridade de outras pessoas.
domingo, 15 de maio de 2016
Pronomes
Antes de apresentar o Carlinhos para a turma, Carolina pediu:
- Me faz um favor?
- O quê?
- Você não vai ficar chateado?
- O que é?
- Não fala tão certo?
- Como assim?
- Você fala certo demais. Fica esquisito.
- Por quê?
- É que a turma repara. Sei lá, parece...
- Soberba?
- Olha aí, "soberba". Se você falar "soberba" ninguém vai saber o que é. Não fala "soberba". Nem "todavia". Nem "outrossim". E cuidado com os pronomes?
- Os pronomes? Não posso usá-los corretamente?
- Está vendo? Usar eles! Usar eles!
O Carlinhos ficou tão confuso que, junto com a turma, não falou nem certo nem errado. Não falou nada. Até que comentaram:
- Ô, Carol, teu namorado é mudo?
Ele ia dizer "Não, é que, falando, sentir-me-ia vexado", mas se conteve a tempo. Depois, quando estavam sozinhos, a Carolina agradeceu, com aquela voz que ele gostava.
- Comigo você pode botar os pronomes onde quiser, Carlinhos.
Aquela voz de cobertura de caramelo.
quarta-feira, 11 de maio de 2016
Contos de cães e maus lobos
Trecho do conto "As mais belas coisas do mundo".
Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pensei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais, a cara das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chaminés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor.
Pasmei diante do seu conceito de beleza.
Ele incluía os modos de ser, esses ingredientes complexos que compõem a receita do carácter ou da personalidade, a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos tudo.
Convenci-me de que as coisas mais belas do mundo se punham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que nos enganavam, devido à vergonha ou à matreirice. O que sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser como colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou não se roube, para que não se gaste ou não se canse.
A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento, aquilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas, intuitivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é como fazer.
Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita não está preparado para ser melhor do que já é. Até para ver a realidade é importante acreditar. A minha mãe disse que eu virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso sonhar acordado. Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir.
segunda-feira, 9 de maio de 2016
Mais um Leminski
Amo abrir o(s) livro(s) e descobrir um poema que não lembrava. E colocar o bonito aqui.
Assim:
DIVERSONAGENS SUSPERSAS
Meu verso, temo, vem do berço.
Não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície
onde o verbo vem ser mais?
Não sirvo pra observar.
Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.
Onde estará meu verso?
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
Assim:
DIVERSONAGENS SUSPERSAS
Meu verso, temo, vem do berço.
Não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície
onde o verbo vem ser mais?
Não sirvo pra observar.
Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.
Onde estará meu verso?
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
sábado, 7 de maio de 2016
Paraísos de Papel
Hoje nossa página faz 4 meses, com mais de 3000 likes e com um vídeo lindo de dicas.
Aproveitem!
Aproveitem!
terça-feira, 3 de maio de 2016
Uma coisa maravilhosa do Veríssimo
Uma das minhas crônicas favoritas (são dezenas, mas quem está contando?)
Mike Maguí
O Paulo e a Dé tinham convidado a Lana e o Antônio para jantarem na casa deles e depois assistirem ao que o Paulo chamara de "um pornozinho" no videocassete. O Antônio foi contrafeito, embora a Lana não visse nada de mal.
- Não vejo nada de mal, ué.
- Pô, Lã!
- Qual é o problema?
- Sei lá - dissera o Antônio, que não queria estragar o prazer de ninguém, mas puxa!
Mal conheciam o Paulo e a Dé. Acabara concordando mas com uma condição.
- Se for alguma coisa com anão e cabrito, eu levanto e vou embora!
Quando colocou o cassete no aparelho o Paulo piscou um olho e disse: "Este é com o Mike Maguí".
- Ah, o Mike Maguí - disse o Antônio, como se soubesse quem era.
- Ele é bom, é? - quis saber a Lana.
- Espera só - disse o Paulo.
E a Dé reforçou:
- Espera só.
No carro, voltando para casa, a Lana estava silenciosa. O Antônio já falara mal da comida ("Strogonoff, com esse calor), falara mal do Paulo ("Recorta artigo do Delfim, você viu?"), falara mal até do cachorro ("Antipático"), e a Lana nada, pensativa. Finalmente o Antônio disse:
- E o Mike Maguí, hein?
E a Lana:
- Que coisa, né?
O Antônio olhou para a mulher com o rabo de olho.
- Você sabe que aquilo pode ser truque, não sabe?
- Como, truque?
- Truque. Maquiagem. De borracha.
- Acho que não era não.
- E o cara é um imbecil. Vamos e venhamos. Tem cara de abobado. Você não achou??
- Até que não.
- Por amor de Deus, Lã. Já imaginou um cara desses... um cara desses...
- O quê?
O Antônio procurava o que dizer. Finalmente disse:
- Lendo Rilke?
A Lana fez um ruído de desdém.
- Não sei o que ler Rilke adiantou para certas pessoas...
Eu sabia que nós não deveríamos ter ido, pensou o Antônio.
domingo, 1 de maio de 2016
sábado, 30 de abril de 2016
Agora aqui ninguém precisa de si
ex
trair
do tempo improvável, do improvável,
de suas maquinações, ações,
do ato regular que se dissipa em método, todo
hábito que habito, repito,
da meta inalcançável que me fita, cripta
do incontável número dos dias vividos, idos,
da inumerável cota dos dias por vir, ir,
da engrenagem que não para, dispara,
sacode o chão que piso, piso
de um ônibus em movimento, momento
em que me agarro ao cilindro de metal do alto
-
a vida
-
não a que resta ainda, indo,
mas a que transborda de cada ar expirado, inspirado,
até que arrebente, vente.
quarta-feira, 27 de abril de 2016
Mais poesia nova
Forgetting someone is like
forgetting to turn off the light in the back yard
so it stays lit all the next day.
But then it's the light
that makes you remember.
forgetting to turn off the light in the back yard
so it stays lit all the next day.
But then it's the light
that makes you remember.
domingo, 24 de abril de 2016
quinta-feira, 21 de abril de 2016
Mais poesia
De Adélia Prado
Chorinho Doce
Eu já tive e perdi
uma casa,
um jardim,
uma soleira,
uma porta,
um caixão de janela com um perfil.
Eu sabia uma modinha e não sei mais.
Quando a vida dá folga, pego a querer
a soleira,
o portal,
o jardim mais a casa,
o caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
tudo de outro dono,
tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas,
o coração amolecido como um figo na calda.
segunda-feira, 18 de abril de 2016
900
Postagem de número 900. Que coisa incrível. Desde 2008, com
algumas interrupções. Pensei em escolher meus queridos: Whitman, Leminski,
Alice, Caio, Valter, Toni, Amós Oz, Nelson Rodrigues, Bill Bryson, Ana
Cristina, Mark Twain, Veríssimo, Guimarães Rosa, Sophia, Vinícius, etc. Mas
voltei à introdução do livro do Harold Bloom: "Como e Por que ler".
Em 8 páginas Bloom nos explica, o porquê lemos. E o porquê é importante ler. E
mais importante ainda: o porquê gostamos dessa loucura toda. Então, aí vai um
trechinho.
"Livrar a mente da presunção enseja o segundo princípio para o resgate da leitura: Não tentar melhorar o caráter do vizinho, nem da vizinhança, através do que lemos ou de como o fazemos. O auto-aperfeiçoamento é projeto suficientemente grandioso para ocupar a mente e o espírito: não existe a ética da leitura. A mente deve guardar certa cautela, até ser expurgada da ignorância original: incursões precoces pelo ativismo têm o seu fascínio, mas consomem tempo demais, e, para a leitura, jamais haverá tempo bastante".
Sabem, eu fico feliz com uma coisa (e perdoem a minha falta de modéstia): coerência. Desde o início o blog era só pra falar de literatura. E é esse o objetivo. E espero continuar assim. E num momento raro: eu e meu Grande Sertão.
Obrigada.
sábado, 16 de abril de 2016
quinta-feira, 14 de abril de 2016
Nada a temer
A idade adulta traz aproximação, fluidez e dúvidas; e nós mantemos a dúvida a distância, recontando aquela história familiar, com pausas de efeito calculado, fingindo que a solidez da narrativa é uma prova de que ela é verdadeira. Mas a criança ou adolescente raramente duvida da veracidade e da precisão dos lúcidos e brilhantes fragmentos do passado que ela possui e celebra. Portanto, nessa idade, parece lógico pensar que nossas lembranças estão armazenadas em algum depósito de malas, prontas para serem resgatadas mediante um tíquete; ou (se isso parecer uma comparação velha, sugerindo trens a vapor e compartimentos só para mulheres), como mercadorias deixadas num desses depósitos individuais que existem agora nas principais estradas. Sabemos que devemos esperar o aparente paradoxo da velhice, quando iremos começar a recordar segmentos perdidos da nossa infância, que irão tornar-se mais nítidos do que os segmentos da meia-idade. Mas isso apenas parece confirmar que está tudo lá em cima, em algum depósito cerebral, tenhamos ou não acesso a ele.
terça-feira, 12 de abril de 2016
Fama e fortuna
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço do meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço do meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
domingo, 10 de abril de 2016
sábado, 9 de abril de 2016
Ferreira Gullar
Trecho inicial de "E o cronista endoidou", de 19/06/2005.
Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo. O assunto é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não interessa a ninguém e, quem sabe, por isso mesmo eu deva falar dele.
Costumo dizer que o poema não vale nada. Não vale nada no mercado. Pouca gente compraria um poema e, se comprasse, seria barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.
Por exemplo, quando estava eu no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda morena brasileira. Ele e ela frequentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de exilados. Reuniões que não eram tão alegres quanto os papos no Jangadeiros ou no Vermelhinho, mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma coisa do que nada. Há divergências, é claro.
Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu, sem muita alternativa, escutava. Até chegar o momento azado em que pedia licença a pretexto de ir ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na próxima reunião, se ele aparecer por lá, vai ser pior ainda, aí é que grudará comigo o tempo todo.
E chegou esse dia. Fui para a reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja, distraí-me e ele sentou-se ao meu lado. E sabem o que aconteceu? Não falou uma só palavra de economia - só falou de poesia, assunto que dominava muito bem. Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor poemas de Eliot e de Fernando Pessoa.
- Estou relendo meus poemas queridos - confessou.
E então entendi: é que a morena tinha ido embora e, quando a morena vai embora, meu caro, só a poesia nos socorre. É então que ela se torna necessária.
Se tudo corre bem, a economia basta, mas, se a morena se vai, não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia, paleontologia que dê jeito. Só mesmo a poesia.
quarta-feira, 6 de abril de 2016
Contra um mundo melhor
"Às vezes me pergunto de onde vem minha simpatia pela atitude do rei Davi em seus salmos, já que não sou religioso. O crítico Otto Maria Carpeaux me responde. Nossa imensa ignorância perante a imensidão da vida e do universo, perante a impenetrabilidade das razões de nosso nascimento e de nossa morte, perante nosso inexorável isolamento nesta vastidão dos espaços infinitos de escuridão que nos assusta, como diria Pascal, nos impõe a humildade como forma última de estar no mundo. Sem ela, não há conhecimento possível."
terça-feira, 5 de abril de 2016
Minha Toni Morrison
Trecho da página 158 de "God Help the Child"
They will blow it, she thought. Each will cling to a sad little story of hurt and sorrow - some long-ago trouble and pain life dumped on their pure and innocent selves. And each one will rewrite that story forever, knowing the plot, guessing the theme, inventing its meaning and dismissing its origin. What waste. She knew from personal experience how hard loving was, how selfish and how easily sundered. Witholding sex or relying on it, ignoring children or devouring them, rerouting true feelings or locking them out. Youth being the excuse for that fortune-cookie love - until it wasn't, until it became pure adult stupidity.
A maior.
domingo, 3 de abril de 2016
sábado, 2 de abril de 2016
Descobertas - Yehuda Amichai
Descobrir um poeta pra mim é uma felicidade. Mas sou lenta. Descubro coisas da maneira mais atrasada possível.
Deveria ter descoberto Yehuda Amichai há tempos, mas, né?
Foi, talvez, o mais importante poeta de Israel. Tem poemas traduzidos em não sei quantos idiomas. E acabei de ler este livro mais lindo.
E um pouquinho da poesia dele:
Before
Before the gate has been closed,
before the last question is posed,
before I am transposed.
Before the weeds fill the gardens,
before there are no more pardons,
before the concrete hardens.
Before all th flute-holes are covered,
before things are locked in the cupboard,
before the rules are discovered.
Before the conclusion is planned,
before God closes his hand,
before we have nowhere to stand.
quinta-feira, 31 de março de 2016
O Jardim do Diabo
Do Veríssimo
"Todos estes livro, todas essas histórias, todas estas ideias, todas estas palavras não significariam nada - nada! - se não fosse uma coisa. Você sabe o quê?" Não adiantou eu fazer "não" com a cabeça, ele não estava me olhando. "Uma coisa que dá sentido a tudo, uma coisa sem a qual as palavras são apenas manchas no papel, todas as histórias não passam de encantações e todas as ideias nascem mortas. O que é? Me diga, o que é?" Eu disse que não sabia. Ele baixou a voz, dramaticamente, e respondeu sua própria pergunta. "O pecado." Certo", disse eu, como se tivesse estendido e concordava sem hesitação. "O pecado!", gritou ele. "O que nos condena é o que nos salva. Ou, pelo menos, salva a nossa literatura." Ele sentou na sua poltrona preferida, que tinha o couro rachado. Estava, agora, falando sozinho. "Muitas vezes você vai ler um livro e sente que ali falta alguma coisa. Ideias, ótimas. Redação, perfeita. Erudição. Estilo. Tudo. Mas falta uma noção de pecado. Você sente que o autor reuniu todos os ingredientes mas esqueceu o principal. Quem não tem a convicção do pecado nunca fará a grande literatura. Você concorda?" "Certo", respondi, cem por cento de acordo. Ele pareceu se dar conta da minha idade e fez um adendo. "É possível fazer manjar branco sem a essência de coco?" "Impossível", concordei. Manjar branco era uma das paixões dele. Anos mais tarde concluí que ele mantinha a biblioteca como um ex-alcoólatra mantém uma adega bem estocada, para ter sempre à mão a magnitude da renúncia. Ou um vertiginoso que escolhe viver à beira do abismo, como um desafio. Depois descobri que aquela era a sua vida clandestina. Uma das suas vidas clandestinas. Eu o entendi depressa demais.
terça-feira, 29 de março de 2016
Contos de cães e maus lobos
Trecho de "Querido Monstro":
Porque nenhuma tristeza define obrigatoriamente o que podemos fazer no dia seguinte. No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos sempre optar por regressar à busca das ideias felizes.
Eu comecei pelos poemas de amor. Foi o melhor que me poderia acontecer.
segunda-feira, 28 de março de 2016
Toni Morrison e o Clube do Livro da Oprah
Acho que minha autora contemporânea favorita é a Toni Morrison e este, sem dúvida, é um dos melhores livros dela.
E viva o Clube do Livro da Oprah!
E viva o Clube do Livro da Oprah!
quarta-feira, 23 de março de 2016
Nelson Rodrigues
Trecho de "Ser para sempre fiel e morrer, um dia, com o ser amado". O Globo - 2 de janeiro de 1968.
Chamava-se Meireles. Meireles ou Marcondes? Não, não. Era Meireles mesmo. Pois o Meireles tinha uma namorada em cada esquina, noivas e esposas por toda a cidades. Muitos já insinuavam o vaticínio: - "Qualquer dia dão-lhe um tiro!" E o Meireles foi, talvez, o primeiro sujeito que ouvi falar em "amor livre". Certa vez houve uma festa na vizinhança; era batizado ou aniversário, não me lembro mais.
E o Meireles (ou seria Marcondes?), o Meireles estava lá e tomou conta da festa. Cercado de mocinhas, de senhoras, contou a própria vida. Confirmou que tinha uma paixão, ou várias, em cada bairro. Alguém lhe perguntou se não tinha vergonha. Abriu o riso: "Vergonha teria de ser homem de uma mulher só!" Naquele tempo as mulheres usavam leque (o movimento lépido ou lento do leque era de uma delicada voluptuosidade). E as presentes abanavam-se com mais angústia.
(Depois se soube que o Meireles tinha não só namoradas, mas filhos por toda a cidade). No fundo, no fundo, a audiência estava fascinada com esse descaro monumental. Ao sair, ainda disse: - "Qualquer um pode gostar de quinhentas ao mesmo tempo." Eu estava no aniversário, comendo mãe-benta. O Meireles foi, talvez, o primeiro cínico que conheci da vida real.
Depois que o Meireles saiu, um vizinho, já senhor, de olho grande e triste, disse apenas: - "É um canalha!" Aí está um ponto de exclamação que realmente o velho não usou. Dissera "canalha" sem ira, um "canalha" que saiu apenas informativo. Quanto a mim, nos meus sete anos, exatamente sete anos, tive uma náusea adulta.
segunda-feira, 21 de março de 2016
O título de livro mais criativo
Este é o tema do vídeo de ontem.
A gente tem tantos... mas acabou escolhendo um só cada uma.
A gente tem tantos... mas acabou escolhendo um só cada uma.
sábado, 19 de março de 2016
Comédias da Vida Privada
Dia da Secretária. Este também teve uma origem curiosa. Segundo algumas versões, ele começou no Brasil, quando uma mulher descobriu na agenda do marido a seguinte inscrição: "Flores e bombons para a Bete. Mandar entregar no Motel".
- Quem é essa Bete? - perguntou a mulher com fingido desinteresse, sacudindo o marido pelo pescoço.
- Ora, quem é a Bete. É a Dona Elizabete, minha secretária. Você conhece ela!
- Conheço e sei que o aniversário dela já passou. Por que as flores e os bombons?
- Onde é que você viu isso?
- Na sua agenda.
- E você viu a data na agenda?
- O que é que tem a data?
- É o Dia da Secretária.
- Nunca ouvi falar.
- Foi recém-inventado - disse o marido, que tinha inventado naquele minuto.
- E o motel? Por que entregar no motel?
- A dona Elizabete está morando no motel, provisoriamente, até que terminem os reparos na casa dela.
- O que houve com a casa dela?
- Você não soube? Foi arrasada por uma manada de elefantes.
- Você espera que eu acredite nisso?!
- Meu bem, eu inventaria uma história destas?
- É, acho que não. Desculpe, querido.
- Está desculpada. Agora largue o meu pescoço.
terça-feira, 15 de março de 2016
Amós Oz
Trecho da palestra "Entre o certo e o certo" de 2002:
"Quando cunhei a expressão 'Faça a paz, não amor', eu não estava, é óbvio, pregando contra o amor. Mas sim, em certa medida, tentando acabar com a confusão amplamente difundida entre paz e amor e fraternidade e compaixão e perdão e concessão e assim por diante, que faz as pessoas pensarem que se elas apenas largassem suas armas, o mundo no mesmo instante se tornaria um lugar maravilhoso, adorável. Pessoalmente, acredito que o amor é um artigo raro. Creio que um ser humano, pelo menos segundo minha experiência, pode amar dez pessoas. Se for muito generoso poderá amar vinte pessoas. Um ser humano sortudo, muito felizardo pode até mesmo ser amado por dez pessoas. Se for extraordinariamente sortudo, pode ser amado por vinte pessoas. Se alguém me disser que ama a América Latina, ou que ama o Terceiro Mundo, ou que ama a humanidade, isso é muito vago para ser significativo. Como lamentava uma canção popular muitos anos atrás, 'Não há amor suficiente no mundo'. Não creio que o amor seja a virtude com a qual serão resolvidos os problemas internacionais. Precisamos de outras virtudes. Carecemos de senso de justiça, mas também de senso comum, necessitamos de imaginação, de uma profunda habilidade de imaginar o outro, às vezes nos pondo no lugar dele."
Obs - acho que o livro tem alguns problemas de tradução. Mas vale.
segunda-feira, 14 de março de 2016
Modo de amar
prometo ser-te fiel se mo fores
também. não é certo que mo venhas a
ser. por isso, já to perdoo
prefiro partir assim para o resto da
vida. assim, como os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade
não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade
que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse. e depois, pergunto,
vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro
e não esperar mais nada senão a
verdade. a decadente verdade que
chegará já depois dos primeiros beijos
também. não é certo que mo venhas a
ser. por isso, já to perdoo
prefiro partir assim para o resto da
vida. assim, como os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade
não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade
que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse. e depois, pergunto,
vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro
e não esperar mais nada senão a
verdade. a decadente verdade que
chegará já depois dos primeiros beijos
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