terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Como curar um fanático

Trecho final de uma palestra  proferida em novembro de 2015:

No livro que escrevemos juntos, Os judeus e as palavras, minha filha, professora Fania Oz-Salzberger, e eu afirmamos:


     Existe uma teologia judaica da chutzpá. Ela reside na sutil junção da fé, tendência a discutir e fazer humor de si mesmo. E redunda numa reverência especialmente irreverente. Nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional. Você pode rir do rabino, de Moisés, dos anjos e até mesmo do Todo-Poderoso.
      Os judeus têm um longo legado de riso, às vezes adjacente ao nosso longo legado de lágrimas. Há uma sólida tradição de autocrítica agridoce, muitas vezes ao ponto da autodepreciação, que se mostrou um instrumento confiável de sobrevivência num mundo hostil. E uma vez que riso, lágrimas e autocrítica são quase sempre verbais, todos eles fluem tranquilamente no hábito hebraico e judaico de discutir por tudo e debater com todo mundo: consigo mesmo, com os amigos, com os inimigos, e às vezes com Deus.


Esses traços judaicos de rir e de discutir são ao mesmo tempo muito sociais e profundamente individuais. Vou terminar com uma reflexão sobre este verso sublime do poeta inglês John Donne: "Nenhum homem é uma ilha". A isso, ouso acrescentar: nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península: em parte conectado com a terra firme da família, da sociedade, da tradição, da ideologia, etc. - e em parte voltado para os elementos, sozinho e em silêncio profundo.

Penínsulas é o que somos - e nos deve sempre ser permitido continuarmos a sermos penínsulas. Eu me ressinto daqueles que ficam pressionando cada um de nós a sermos mais do que uma molécula sem rosto de alguma terra firme, alguma terra prometida, algum reality show, algum paraíso de extremistas - tanto quanto me ressinto dos que estão tentando nos tornar um arquipélago de ilhas isoladas, cada uma mergulhada numa solidão eterna e numa perpétua luta darwinista com todos os outros.

Nós, humanos, pertencemos uns aos outros, mas não da maneira dos fanáticos, e não da maneira comercialmente infantil. Pertencemos uns aos outros no sentido às vezes atingido na boa literatura: no dom da curiosidade, na aptidão para imaginar a vida na pele de cada um dos outros. E depois o momento de graça, o momento metaforicamente judaico no qual traduzimos nossas profundas diferenças individuais no milagre das pontes construídas por palavras.


3 comentários:

Elaine Cuencas disse...

Vou ler, vou ler... certamente!

Rogério Carvalho disse...

Quando li a orelha desse livro, para saber do que se tratava, lembrei-me imediatamente de você e do Pondé. Também lembrei-me de Borges, para quem a ironia e o riso serviam de crítica literária.

Andréa disse...

Rogério, mesmo? Este livro tem a nossa cara... você tem toda razão.
E que lembrança fantástica do Borges...
Beijo!