sábado, 27 de dezembro de 2014

Murilo Mendes

O que eu sabia de Murilo Mendes há semanas? Nada. Comprei, então, este livro. Quanta surpresa boa ainda nessa vida, não?



A marcha da história

Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores,

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Poesia é assim.

Para mim poesia (talvez a literatura como um todo) é isso. Simplicidade e beleza.

De Estrela Ruiz Leminski

"parece muito fácil
mudar a mente alheia
fazer reforma agrária
uivar pra lua cheia

parece fácil a beça
distribuir a renda
curtir a natureza
mas a guerra tem pressa

parece fácil pra caramba
dividir teto, casa, cama
se declarar pra quem se ama

se é fácil me diz
mudar pra outro país
ver teu show sem pedir bis
entender o que fiz

parece fácil mas não é
ser homem, ser mulher
entender o que se é"



domingo, 21 de dezembro de 2014

O coração em " A Desumanização"






"Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.
Quando empedernir, esquecido de toda a humanidade da vida, ficará entre as loiças, como inútil souvenir ou peça de mesas para uma festa que nunca acontecerá.
Terei sempre pena dele. Estará como um animal antigo que perdeu a qualidade dos novos dias. Sem visitas. Será apenas a humilhação entristecedora de todos os afetos.
Poderei, nas arrumações, preparando alguma partida, aligeirando os fardos, deixá-lo no lixo para que a natureza o recicle com as suas ganas aturadas de recomeçar tudo. Até lá, a minha coragem assume apenas a evidência de que somos matéria morrendo. Começarei morrendo pelo coração.
Gostarei sempre dele, como se gosta do que está extinto, sejam os dragões, os anjos ou as distâncias. Histórias de coisas que não voltam.
O meu coração sem visitas perderá a memória e, quando nos separarmos de vez, certamente será mais feliz.
Se me perguntarem, direi que nasci sem ele. Jurarei e mentirei sempre.
Talvez, depois de esquecido, sirva de ocarina e possa com ele tocar canções. Um coração por ocarina faria todo o sentido do mundo.
Pudesse esse ser o destino de cada um, amadurecer assim o coração. De percussão a instrumento de sopro. Ensaiar uma melodia até o fim. Ter uma melodia por identidade e deixá-la a alguém que aprendesse. Quando não existíssemos, estaríamos suficientemente no som. Bastaria o som para impedir que a morte fosse tão exagerada. Talvez quem aprendesse a canção pudesse também guardar-nos as paixões. Pousá-las ao pé de si. Dizer: esta ocarina é bonita. A morte seria só bonita. Uma coisa de ouvir, contra o silêncio insuportável".

Páginas 223 e 224. Que texto.


sábado, 6 de dezembro de 2014

Otto e a melhor descrição.

Otto para Fernando (trecho de carta de 23 de julho de 1959):

"Vi outra crônica sua na Manchete, de Veneza. Gostei. Os venezófilos ficarão fulos com a sua irreverência. Eu aplaudo. A praia italiana de que fala o PMC é Pestum. Amanhã tem almoço no Caio, de despedida de nóis. Vou dar muita banana mental. Recebi um bilhete amoroso do Paulo e de outros. Fiquei satisfeito, qualquer prazer me diverte. Estou de um mau humor insuperável, naquele tom de voz incrível. Já não me suporto mais. Vou me expulsar de mim mesmo, me largarei na primeira sarjeta."


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Valter

"As pessoas são tão diferentes. Aprecio muito que o sejam. Fico a pensar se me acharão diferente também. Adoraria que achassem. Ser tudo igual é característica de azulejo na parede e, mesmo assim, há quem misture.

Eu sou a favor de uma meia de cada cor. Adoro cores. A minha mãe diz: organize. Significa que acha que eu baralho demasiado. 

Às vezes, fico horas a arrumar o meu quarto. Cansa, mas gosto do resultado final. Queria muito ter esperança em fadas que mantivessem os trabalhos chatos sempre feitos. Mas isso não acontece. Para ser menos chato, eu canto no trabalho. Chego a ficar rouca, das horas e da falta de afinação. Sou, enquanto cantora, prima das cacatuas. Não me importa. Ainda assim, eu canto. Adoro cantar."


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Fran Lebowitz

"Very few people possess true artistic ability. It is therefore both unseemly and unproductive to irritate the situation by making an effort. If you have a burning, restless urge to write or paint, simply eat something sweet and the feeling will pass. Your life story would not make a good book. Do not even try."



quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Mais cartas

Como a gente (eu, Fal, Elaine, mais uns 5 no mundo) é doida por livro de carta, mais um pedacinho de uma do Otto Lara Resende para o Fernando Sabino (vocês já compraram esse livro? Ainda não? Não esperem mais, fazendo o favor) de 11 de junho de 1969.


"Como tem livro sobre ficção hoje em dia! É de ficar doido varrido. Desisti de ser culto. Me interesso por tudo! Por mais que eu diga que escolhi as minhas ignorâncias, quero saber de tudo: Inquisição, bruxaria, história de Minas, psicologia, sociologia, antropologia, ficção (técnica da), romances, contos, místicos, linguística, filosofia, história, crise do mundo moderno etc.etc.etc. Sem falar na sub-literatura, que me atrai pra burro. Recebi um livro do Affonso Ávila e outro do Rui Mourão, mineiros, o Rui sobre o romance de Graciliano. Quá! Tou que nem a Virgínia, quando tirou melhor nota de Francês do que a Cristina Chagas... Essa gente tem muita filosofança, muita sabedeira, cheia de fumaças universitárias, inglesías, americanose, nem criticism, mas ó, aqui ó: talento mesmo!... Nóis num e de se jogar fora não, Fernando. Caprichando, nós também estamos nessa Revolução, você não acha? Eu quero saber que revolução é essa. Você me diga, que eu também sou revolucionário, ora essa. Você não acha?".






segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Millôr

Mais de 500 páginas para você abrir na letra que quiser e escolher o que ler. 



E escolho três palavras que começam com a letra "a". 


ABANDONO - No aeroporto cheio / Eu filo / O adeus alheio.


ACASO - O acaso compõe o melhor da sinfonia, pinta o melhor do quadro, constrói o mais difícil do monumento, inventa o instante da paixão e escolhe papel e barbante do pacote.


ADMIRAÇÃO - Afinal de contas a admiração é filha da maturidade, que traz o reconhecimento das qualidades alheias, ou da babaquice, que nos faz abrir a boca diante de qualquer idiota mitificado ou espertalhão mistificador?


Volto alfabeticamente depois... Boa semana, amigos!

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Pequenas epifanias

Trecho final de crônica publicada em "O Estado de São Paulo." 22 de abril de 1986.

"Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome."


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Fran Lebowitz

Vi na Fal a frase da Fran Lebowitz, a gênia, e coloco aqui:



"Think before you speak. Read before you think".

Para saber mais quem é a moça, cliquem aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Fran_Lebowitz


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O paraíso são os outros

Se tem algum escritor contemporâneo (que escreve em língua portuguesa) tão fantástico como o Valter Hugo Mãe, eu desconheço. Leiam essa preciosidade, amigos.



Trecho número 3

"Eu adoraria ver jacarés, ursos brancos ou cobras de dez metros. Uma vizinha da nossa rua tem uma vaidosa galinha d'angola. Eu gosto de animais e mais ainda dos esquisitos e invulgares, até dos que parecem feios por serem indispostos. 

Os bichos só são feios se não entendermos seus padrões de beleza. Um pouco como as pessoas. Ser feio é complexo e pode ser apenas um problema de quem observa.


Eu uso óculos desde os cinco anos de idade. Estou sempre por detrás de uma janela de vidro. Não faz mal, é porque eu inteira sou a minha própria casa. Sou como o caracol, mas muito mais alta e veloz. A minha mãe também acha assim, que o corpo é casa. Habitamos com maior ou menor juízo."

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Rumo ao Sumo

Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.

Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.


Preciso falar mais alguma coisa?

Este é meu livrinho aberto.

domingo, 9 de novembro de 2014

Mais um pouco de Alice

antes que eu te deixe
deixa eu dar um gole em você
ficar de porre até o verão

deixe uma dúzia de carinho
do mais terno
que dure todo o inverno

me conte um sonho
vou sonhar no outono

depois me deixe ir
se puder me espera
volto quando acabar
a primavera


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Diários de Adão e Eva



Mark Twain era um gênio. Gênio. Grande autor, grande humorista, figura fantástica e creio que um dos meus autores americanos favoritos de sempre. Imaginem a minha felicidade ao passear pela livraria no mês passado e encontrar este livro. Brilhante. Brilhante. 

A edição diz que "só em 1995 os mais relevantes textos de temática bíblica foram encontrados em uma 'caixa póstuma', espécie de caixa-preta literária em que Twain guardava tudo o que escrevera e fora censurado pelas editoras." Em inglês: The Bible According to Mark Twain.



Aqui, o primeiro trecho dos "fragmentos do diário de Adão":

"Segunda-feira

Esta nova criatura de cabelos longos está sempre no meu caminho e me seguindo para cima e para baixo. Não gosto disso, não estou acostumado a ter companhia. Preferiria que ficasse com os outros animais... Hoje está nublado e o vento sopra do leste; acho que nós vamos ter chuva... Nós? De onde tirei essa palavra? Ah, me lembro agora, é a nova criatura que a usa."

Comprem e leiam agora. Por favor.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Hilda Hilst

VII do "Cantares"

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena,
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo veem aquela.



domingo, 2 de novembro de 2014

The Children Act

Um livro delicado, sensível, nem preciso falar o quão bem escrito é.

E na página 220:

"He came to find her, wanting what everyone wanted, and what only free-thinking people, not the supernatural, could give. Meaning."


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Zora Neale Hurston



A autobiografia (que eu não li ainda) chama-se Dust Tracks on a Road.


E na contracapa, isso aqui:



Nada mais a acrescentar, falem a verdade.

A vida dela, neste link aqui.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Um remédio que dá alegria

Trecho inicial da crônica publicada em O Estado de São Paulo - 24 de junho de 1986.

"Semana passada, falei assim: 'Deus é bom demais! Além de João Gilberto, manda Caetano junto!' Até ponto de exclamação usei - coisa que, por sobriedade congênita, não costumo. Esses dias todos, fiquei meio babaca. Fiquei, não: geralmente sou mesmo meio babaca. Porque, mais que em 'Deus' (e as aspas aqui são para que não me imaginem, injustamente, indo à missa ou rezando terços), acredito é na gota de mel que essa coisa-deus-destino-orixá vezenquando derrama sobre nossa cabeça. Bem verdade que acontece de ele derramar a gota e enquanto você, todo melado, espera por mais - ele retira subitamente o pote. Ou, sacanamente, substitui o pote de mel pelo de sal. Volta, então, a secura nossa de cada dia. Como volta o mel, para quem tiver paciência de esperar sem desfraldar a bandeira escandalosa da espera. Que afasta o mel."


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Paul Auster

Meu primeiro raciocínio quando vejo um livro do Paul Auster: ai que delícia. Meu segundo: que bom que ele está vivo e não para de escrever.

E comecei a ler este aqui. Não-ficção. Sempre uma maravilha de texto. E um pouco de inglês no blog.



"The only proof you have that your memories are not entirely deceptive is the fact that you still occasionally fall into the old ways of thinking. Vestiges have lingered well into your sixties, the animism of early childhood has not been fully purged from your mind, and each summer, as you lie your back on the grass, you look up at the drifting clouds and watch them turn into faces, into birds and animals, into states and countries and imaginary kingdoms. The grilles of cars still make you think of teeth, and the corkscrew is still a dancing ballerina. In spite of the outward evidence, you are still who you were, even if you are no longer the same person."

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Um pouco de Nelson

Trecho inicial do texto "Muerte na passeata" publicado em "O Globo" em 11 de abril de 1968. 

"Um tigre é sempre um tigre. Pode vir o mundo abaixo. Ele tem um elenco de instintos e daí não sai. Há de ser tigre do berço ao túmulo. Do mesmo modo, a cabra é uma cabra para sempre. E assim o bode de charrete, com sua barbicha flamenga e os chifres em caracóis. Só o homem pode deixar de ser homem, e repito: só o homem pode se desumanizar.

Coincide que nós vivemos uma época crudelíssima. Para preservar a sua humanidade, o sujeito tem de lutar, ferozmente, contra tudo e contra todos. E das duas uma - ou cada um constrói a sua solidão ou os outros o matam. (Alguém disse que os 'outros' são os nossos assassinos).  Vêm de toda parte as pressões que nos desumanizam. Há a manchete, o rádio, a televisão, o anúncio e, em suma, todo uma gigantesca estrutura que exige a nossa falsificação.

Falsificação. Finalmente, explodiu a palavra. Tudo falsifica: o pai, o estudante, o operário, o intelectual, o namorado, o sacerdote. Há o Vietnã, há o assassinato de Luther King, há a China. E cada fato exige de nós uma posição fulminante um gesto, uma frase, um sentimento, um palavrão. Os temperamentos mais doces são hoje radicais, ululantes e obscenos.

E, então, acontece o seguinte: estamos todos acuados."


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A máquina de fazer espanhóis

"quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores nas costas nem reumatismo, é uma saudade de nós próprios, e não exatamente do regime e menos ainda de salazar."


Desenho feito pelo autor, na primeira página do meu livro.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Otto e Vinícius


Otto pede para o Vinícius se definir, logo no comecinho. Vinícius responde: "sou um labirinto em busca de uma porta de saída". Minha observação: Mas quem não é, Poeta? Quem não é?

Vejam! São quase 11 minutinhos de puro prazer.

sábado, 11 de outubro de 2014

Sempre ele

Fal estava me dizendo de um poema do Leminski que eu não lembrava. É esse aqui. Eu não lembro mais em qual livro está. Alguém? Só sei que ele sempre tem razão: de vez em quando a gente precisa morrer mesmo. E voltar melhor. 

"Já me matei faz muito tempo
Me matei quando o tempo era escasso
E o que havia entre o tempo e o espaço
Era o de sempre
Nunca mesmo o sempre passo

Morrer faz bem à vista e ao baço
Melhora o ritmo do pulso
E clareia a alma

Morrer de vez em quando
É a única coisa que me acalma."


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Oprah

Tá, eu sou suspeita e tonta, mas tudo que a Oprah faz eu amo. Aqui um trechinho do novo livro dela que é uma compilação dos textos da revista.

"Several months later I received a package from my friend and mentor Maya Angelou - she'd said she was sending me a gift she'd want any daughter of hers to have. When I ripped it open, I found a CD of a song by Lee Ann Womack that I still hardly listen to without boohooing. The song, which is a testament to Maya's life, has this line as its refrain: When you ge the choice to sit it out or dance, I hope you dance."


Para a Adriana.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Carta do Caio para o Mário Prata

Trecho de carta do Caio F. Abreu (um pouco antes de morrer, em 1995) para o Mário Prata (não preciso explicar quem é):


"Pratinha querido,

obrigado pela carta que você me escreveu. Pensei em responder pelo jornal mesmo - para dizer principalmente que acho você muito mais Ouro que Prata - mas ia ser muita viadagem toda essa jogação pública de confetes, não?

Hoje gostei mais ainda ao ler que choveram anjos na sua horta depois da crônica. Adorei aquela história do diário da gestação. Anjo-da-guarda é papo quente. Se bem que alguns são meio vadios e nem sempre cumprem horário integral.

Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto sete, outro de sandália havaiana."

E a carta continua... leiam em "Caio 3D: O Essencial da Década de 1990".

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Ler pelo não

"Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América."




Ps: fui fazer um teste no what's e mandei este poema lido por mim pra Fal. Ela criou todo um negócio e tá lá minha voz fanha de sinusite no blog dela. Aqui. 

sábado, 27 de setembro de 2014

Cartas

Elaine, Fal e eu trocamos ideias sobre o porquê gostamos desses livros. Cartas entre autores queridos, jornalistas, artistas - que delícia que são. 

Tenho os meus favoritos: do Leminski ao amigo Régis Bonvicino, do Hemingway para a família, do Capote para tanta gente e mais outros lindos. 



Aqui, do Otto Lara Resende para Fernando Sabino, trecho final de uma carta de 20 de maio de 1958 (Otto em Bruxelas, o amigo aqui):

"Como vão os amigos? Estou devendo carta a muita gente, mas ando numa vida doida, dormindo pouco, me agitando como nunca, para baixo e para cima, cheio de probleminhas e gente dependurada em todos os galhos de minha alma. Literatura, esqueci. Parei tudo, estou distraído de mim e de Deus. Às vezes, penso com angústia em tudo isso, mas não vou puxá-la (a angústia) agora. Deixo para quando você vier, pois você vem, não vem?

Como foi o livro do Paulo? O canalha nem ao menos me mandou um exemplar. Recebeu uma carta minha, a milésima, pelo aniversário dele, não deu a menor bola. Procurei visitar-lhe a sogra em Londres, escrevi contando minuciosamente - nada! Idem quanto ao Millôr. A estes dois, não escrevo mais.

E o Castello? Respondi-lhe petulantemente, mas ele não deu mais sinal de vida. Acho que não deve ter gostado, ou então me gozou muito aí, com você. Mas não faz mal. Eu agora não ligo mais e nada e sou um homem destemido, isto é, nada temo, nada, nada! Libertação do medo!

Procurou o Mozart Valente? Nem isso você me diz. Bom, vou parar, senão me queixarei até o fim e são tantas as queixas! Depois dizem que tenho muitos e bons amigos. Uma ova!

Adeus, doutor. Continue me intrigando, mancomunado com o Pedro Gomes. Mas, por favor, não me atribua frases pejorativas para com São João Del Rei. Qualquer pessoa que me conhece sabe que eu sou incapaz de depreciar a minha nobre e leal São João del Rei, que não troco nem por todas as capitais do mundo. Lá ficou um menino que não existe em nenhuma metrópole do mundo. E esse menino sou eu. Respeite esse menino, respeite a cidade desse menino. Não mexa com o S. João.

Abraço sempre amigo do velho e caluniado,

Otto."


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Riobaldo e Diadorim

"Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos - vislumbre meu - que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era beleza e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança."


O entender da gente por si não alcança. Pois é.

domingo, 21 de setembro de 2014

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres



"Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."

Página 73.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A cólica alheia

Trecho final de "Quem for brasileiro que me siga". Publicada em O Globo no dia 11 de maio de 1968:

"Dizia Machado de Assis, erradamente: - suporta-se com paciência a cólica alheia. Mentira. Nem sentimos as nossas. Está aí o Nordeste. É uma boa cólica. Nós a ignoramos. Há também o Amazonas. Outra cólica razoabilíssima. Nem a percebemos. E há a nossa mortalidade infantil. Outra e considerável cólica. Não nos preocupa. Mas gememos pelo Vietnã, por Cuba, por todos os povos subdesenvolvidos. É a cólica alheia que torce e retorce as nossas entranhas.".

Nelson tem sempre razão.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Mario Quintana

Que delícia ir lendo um punhado de textos do Mario Quintana. Você lê um pouco, dá uma pausa, volta depois... pena que acaba.



Drops variados do livro:


"Com o tempo não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros."

* * *

"O mais difícil, mesmo, é a arte de desler."

* * * 

"Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitações às folhas, anseios ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens."


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ou o poema contínuo

É um sinal de felicidade quando você lê um poema que nunca leu antes e dá um sorriso (no meu caso) e ainda fala alto: "que coisa linda". Vejam:


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - 
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega,
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.




Herberto Helder, páginas 13 e 14 do livro acima.



terça-feira, 9 de setembro de 2014

O pintassilgo

Todo mundo falando deste livro desde o lançamento, no ano passado. Ganhou o Pulitzer, ganhou os paranauê todos. Eu esperava este livro desde sempre, como todo mundo que espera um livro da Donna Tartt (saiba mais aqui). Li em novembro do ano passado. Que coisa fantástica. Leiam. Não se assustem com o tamanho (o meu, em inglês, tem 771 páginas).  Digo isso pois ele acaba de ser traduzido e tia Andréa quer que todo mundo leia. De nada, amiguinhos. 




Aqui, um pedaço da página 353. É muito, muito mais do que este trechinho sentimental, mas tá valendo. E o inglês é lindo e dá pra todo mundo entender, sem mimimi fazendo o favor:



"But I didn't. And, in the truth, it was maybe better that I didn't - I say that now, though it was something I regretted bitterly for a while. More than anything I was relieved that in my unfamiliar babbling-and-wanting-to-talk state I'd stopped myself from blurting the thing on the edge of my tongue, the thing I'd never said, even though it was something we both knew well enough without me saying it out loud to him in the street - which was, of course, I love you."

domingo, 7 de setembro de 2014

Sonhei que a neve fervia.

Eu converso com ela há anos pelo computador. Anos mesmo. A gente se encontrou ao vivo depois de uns 6 ou 7 anos de íntima amizade. Nunca mais nos separamos. Trabalhamos juntas, construímos relações, conhecemos juntas tantas pessoas. Alguns amigos dela são hoje meus, alguns meus são dela. Ela vem aqui. Eu vou lá ficar com Baco e com Maliu. E todos os dias a gente se fala. E sabe onde a outra está e compartilha os tombos. E pequenas felicidades porque a gente ri bastante da vida e da nossa desgracinha de cada dia. E todos têm que ler este livro. Eu chorei, minha mãe queria conhecê-la de tão profundamente emotiva que ficou. E me emociono todos os dias, quando pego para ler um trechinho.



Da página 163:

"Não quero escrever os dias, os meses, as gerações que vão passando, embora adore escritores que o façam.


Eu quero o segundo.



O turning point, ou não, mas aquele momento.



Aquela gota, aquele drops de tempo, aqueles momentinhos, que juntos, fazem da sua vida isso que ela é, fazem de você isso que você é.



Porque, ao fim e ao cabo, é isso que somos todos. Momentos, segundos, gestos pequenos, pensamentos minúsculos, todos bem costuradinhos e macerados. É sobre isso, meu amigo, que eu quero falar."


Eu também. Eu também. Fal está lá no drops e eu sempre aqui.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Caio em "Escuta:"


"Escuta:
foram muitos os momentos
em que te pensei em mim
não sei se foram bons
maus infâncias temores
mas sei que foram.

Ninguém me tira
a certeza de ter te habitado.

Escuta:
não sei escrever poemas
quando estou dentro dum poema
vivo e sem palavras
mas se penso em te dizer
aqui agora assim
forço rimas formas talvez mortas
porque não me esquivo

Não compreendo nada.
Estou perdido neste apartamento desconhecido. Estou sozinho nesta sala com Villa-Lobos tocando, e pouco sei de mim, de ti. Escrevo para não sentir medo, ainda que não seja bom o que escrevo, ainda que não haja coerência no que sou agora. Não me importa a coerência. Falo um poema em voz alta, apenas para ouvir minha voz. Mas no meio do poema descubro verdades que eu te diria."

1970

De: "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu". Página 33.


Obs - para mim Caio é o cronista do dia a dia. O cronista de jornal que tanta falta faz. Sempre foi. E ele tem algumas poesias. Não é meu poeta favorito. Mas volto à questão de sempre - se adoro um autor e ele já morreu, leio tudo. E se alguma coisa perdida é encontrada depois da morte (como este livro do Caio publicado em 2012), eu corro atrás. Tomara que achem um livro de poemas do Nelson Rodrigues, do Mark Twain, ou uma meia-dúzia de romances do Walt Whitman.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A era do ressentimento




Leiam este livro pra gente parar com o mimimi. Pra sempre. Não tem coisa mais chata, sério. Como diz o Pondé, daqui uns anos nossos tempos não serão conhecidos como o do ipad, iphone ou sei lá mais o quê. Mas sim, como "a era do ressentimento". Vejam só:



"É comum nos referirmos às pessoas como coitadas porque têm de enfrentar a vida. Algo que, antes, era considerado óbvio - a vida não tem garantias -, hoje se tornou um erro cósmico. Esse equívoco se evidencia de forma mais gritante no olhar que muita gente tem sobre as contingências da vida social e econômica. 

Criticamos o mundo como se ele fosse responsável por sobrevivermos ou não. Em casos como esses é que o ressentimento se torna mais evidente: a sociedade e as pessoas devem ser responsabilizadas por escolhas individuais. Se me endivido, a culpa é do banco. Se não tenho emprego, a culpa é da sociedade que me obrigada a trabalhar. A questão é: quem foi o desgraçado que inventou essa história de que devemos amadurecer e enfrentar o fato de que não há garantias para nada? Por que esses ressentidos acham que a sociedade deve nos dar tudo e com isso fazer de nós uns retardados mentais em termos de moral? 

A necessidade de que a vida seja garantida atinge níveis metafísicos desde sempre: este é o núcleo de nosso desejo metafísico religioso, a saber, que algo ou alguém garanta nossa sobrevida, mesmo depois da morte. Morto Deus (pelo menos tendo Ele concorrentes mais próximos, como a vida secular, científica e racionalizada), essa forma de ressentimento se escondeu nas camadas mais medíocres da existência: assumiu a forma de uma petição contínua para que eu seja uma eterna criança a ser cuidada. 

Se Freud dizia que amadurecer é aceitar uma orfandade, o amadurecimento passou a ser considerado um modo de opressão. Coitados de todos nós, que somos obrigados a suportar essa ladainha daqueles que não conseguem compreender o que, desde a tragédia grega, se sabe: a vida nunca teve garantias. Também não acho isso agradável, mas, talvez como pensava o escocês Adam Smith, a autonomia seja a escolha moral possível diante do simples aniquilamento de nossa heroica humanidade abandonada na face da Terra."

É isso.

domingo, 31 de agosto de 2014

Bienal e o óbvio ululante

Antes de falar deste livro, falo da Bienal que está acabando hoje. Estive lá com a Fal falando sobre blogs. Blogs são literatura, blogs são o que você quiser, mas acima de tudo, blogs são diversão, como diz o Bruno Rodrigues, que acaba de lançar seu livro. Eu não sou escritora (não sou, nem serei) - como já resumi com o Adriano - eu só coloco aqui o que acho bacana. E cada um faz o seu da maneira que quiser. E que traga muito prazer aos leitores. E as redes sociais? Bom...algumas passam, nós passamos, e virão coisas diferentes. Os blogs ficam aqui. Quando a gente vai parar de ler e nos divertirmos? Como diz o Caio - nunca de núncaras. Amém.

Ontem falamos de Nelson Rodrigues. Volto com ele. Sempre.



Trecho de uma crônica publicada em 28 de maio de 1968. No "O Globo":

"Eis o que eu queria dizer:  - considero Opinião um nome impróprio e, repito, um nome alienado. Com as técnicas modernas de promoção, o homem cada vez pensa menos. É o jornal, é o rádio, é a televisão, é o anúncio, é o partido que pensa por nós. Nós 'achamos' o que os outros 'acham'. A minha 'opinião' deixou de ser um ato pessoal, uma posição solitária, um gesto de orgulho e desafio. Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem ter jamais ousado um raciocínio próprio. Há toda uma massa de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios feitos."

Boa semana, amigos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Seja feliz

Ah, Vinicius... quanta coisa boa.. Este trecho curtinho é tão delicado que não resisti e coloco aqui.


De Vinicius com Baden Powell.

SEJA FELIZ

Foi, fico como todo amor se vai
Sem nem dizer aonde vai
Foi e eu fiquei sem ninguém
À espera do que não vem
Que melancolia

Foi, só porque eu nada fiz
Como um adeus que nem se deu
Pois seja muito feliz
Infeliz já sou eu
Pra sofrer sofro eu









terça-feira, 26 de agosto de 2014

Viva Leminski!

É o meu poeta de sempre, aquele a quem eu recorro quase todos os dias: Leminski. 70 anos ele faria.



Este trecho é de uma carta escrita ao amigo Régis Bonvicino, em outubro de 1977, deste livro acima (que está esgotado, mas ainda há alguns na Estante Virtual, de nada).

"esculhambe-se vire-se altere dê alteração
considere a possibilidade de ir pro Japão
rejeite o projeto de felicidade
q a sociedade te propõe

eu sei
você é paulista
mas ser paulista não é tudo

rompa

fique mais irregular

seja mais inconveniente

é a linguagem que está a serviço da vida
não é a vida que está a serviço da linguagem

a linguagem vem
sai na urina
acontece

fazer poemas não é a coisa mais importante
mas para quem faz é
e tem que ser assim

o signo é nosso destino
nossa desgraça e nossa glória

uma aranha sempre sabe
que depois desta teia
virá outra teia e outra teia e outra

uma aranha não duvida

v. vê
não há pressa: mallarmé deixou meiadúzia de coisas
augusto idem
não se importe com a frequência/ a fecundidade/ a abundância
uma década pode esperar um bom poema".











sábado, 23 de agosto de 2014

No teu deserto

Este blog está virando, praticamente, um blog de literatura portuguesa. Acho lindo. 



Eu li este livro no ano passado. É um livro curto e maravilhoso. E acredito que cada um de nós tem uma história parecida pra contar (é só trocar o deserto por outro local). Leiam e entendam o porquê disso. Aliás, é só aproveitar a Bienal do Livro e ir lá comprar. Miguel Sousa Tavares é filho de Sophia. Essa mesmo. 

Vejam que coisa:

Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara. Nunca como contigo, nunca tão fundo, tão longe, tão perdidamente. Mas voltei, porque o deserto tornou-se quase um vício e a minha íntima religião, o único divino a que prestava contas e onde me reencontrava. E, de cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, incrivelmente bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: "Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição". 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Gracinhas

Eu amo as histórias do Manual Prático de bons modos em livrarias. Amo. Por favor comprem e divirtam-se. Aqui eu coloco duas pra gente rir (ou chorar) um pouco.





1
Freguesa: Mocinho, por favor, você pode me mostrar onde ficam os livros sobre Shoyu?
(Livreiro, prontamente, leva a cliente até a estante de gastronomia e mostra alguns livros de culinária.)
Freguesa (inconformada): Não. não. Não são esses!
(Pensativo, livreira mostra títulos sobre molhos, comida oriental e NADA.)
Freguesa: (no alto da sua indignação e falando cada vez mais alto): SHOYU, MEU FILHO, SHOYU!
(Sem ter a quem recorrer, livreiro olha desoladamente para os lados, sem um resquício de esperança.).
Freguesa 2: OSHO! O que ela quer são livros do OSHO!

2
Freguês: Oi, eu queria o livro Sartre no Lago.
Livreiro: Desculpe, mas qual é o nome do livro?
Freguês: Sartre no Lago.
(Livreiro pega uma peça ali, outra aqui e monta o quebra-cabeça.)
Livreiro: Não seria o Kafka à Beira Mar?
Freguês: Isso! Quase igual, né?

domingo, 17 de agosto de 2014

A desumanização

Sem dúvida, uma das melhores coisas que li na minha vida. Principalmente nos últimos tempos.


Nas páginas 41 e 42:

"Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. Ele afirmava: o nome da lagoa é Halla, é Sigridur. Ainda que as palavras sejam débeis. As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza. Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. A esperança na humanidade, talvez por ingénua convicção, está na crença de que o indivíduo a quem se pede que ouça o faça por confiança. É o que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizermos algo que se toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente."

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Prece


Sophia de Mello Breyner Andresen. Sempre Sophia.

"Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas."


domingo, 10 de agosto de 2014

Poema em linha reta


Eu não lembrava desse poema. A Fal me lembrou dele, eu fui buscar no meu "Ficções do Interlúdio/4" e lá estava. Um resuminho do que você vai ler (praticamente uma explicação para as redes sociais):  todo mundo é esperto e lindo. Menos você. 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita.
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas a infâmia;
Que contassem, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos, nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Não deixa fugir a vida.

Acho que este é um dos meus livros de poesia favoritos. De autor vivo com certeza é. Por que todo mundo morre?


E Alice Ruiz:

"contar uma história de amor
por o fim pelo meio
um começo que não veio
nenhuma rima com or

cantar como quem resiste
resistir como quem deseja
meu versejar seja
o riso que te visite
a brisa que te festeja

não
tristeza não
essa é quando
a alma veste luto
e já não luta

peleja sim
coração
em busca da beleza

corre anda rasteja
só não deixa fugir
a vida que te beija"

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Herberto Helder

A descoberta de novos poetas é algo incrível. Vi um amigo no face falando de Herberto Helder e fui atrás. Que coisa linda, que coisa linda... e este livro vem com um CD - é o próprio autor recitando 5 poemas. No início: "Tudo quanto nesse livro possa parecer acidental é de facto intencional." É a vida, poeta.


Se um dia destes parar não sei se não morro logo,
disse Emília David, padeira,
não sei se fazer um poema não é fazer um pão
um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,
um dia destes vejo que não vou parar nunca,
as mãos súbito cheias:
o mundo é só fogo e pão cozido,
e o fogo é o que dá ao mundo os fundamentos da forma,
pão comprido nas terras de França,
pão curto agora nestes reinos salgados,
se parar não sei se não caio logo ali redonda no chão frio
como se caísse fundo em mim mesma,
a mão dentro do pão para comê-lo
- disse ela.

Boa semana, meus amigos.



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Nelson Rodrigues

Dica: leia uma crônica do Nelson Rodrigues por dia. Leia. Eu leio há tempos. Comece por esta coletânea.



Aqui um trecho de: "O brasileiro, esse imperialista" publicada no dia 19 de dezembro de 1972 em "O Globo".

"1. O sujeito que bebe atravessa um estado alcoólico que não é ainda o pileque. Digamos que ele tenha tomado uns três uísques. Bem sei que há pessoas sem nenhuma resistência. Tenho um amigo que se embriaga até com o licor do bombom. Normalmente, porém, os três uísques não derrubam ninguém e repito: - é comum que, com três uísques, o sujeito adquira uma aura interessantíssima.

2. Certa vez, numa conversa de grã-finas, uma delas perguntou a outra: - "Você gosta do seu marido?" Resposta: - "Gosto, depois do terceiro uísque." E explicou que, sóbrio, castamente sóbrio, o marido tinha a aridez de três desertos. Precisava beber naquela exata medida. E, então, tornava-se mais interessante, mais denso, mais amoroso e lúcido. Em casa, quando o via bocejar de tédio cruel, a própria esposa preparava, uma por uma, as três doses. Se ele queria uma quarta, ela negava: - "Chegou!"

3. Por que é mesmo que eu estou dizendo isso? Já sei. Tenho um amigo que está exatamente nesse caso. Ou por outra: - esse amigo é o marido da grã-fina, ou seja, o tal que, sem os três uísques, não é nada, não é ninguém. E, ontem, ele bateu o telefone para mim. Começou: - "Preciso falar contigo." E eu: - "Quando?" Foi taxativo: - "Agora." Era meio-dia. Justamente, eu estava saindo para o almoço. Fez o apelo: - "Almoça comigo." Digo - "Está bem." Combinamos que seria no Nino. Uma hora.

4. Minha impontualidade é uma virtude: - chego antes. Às dez para uma, estava lá. Entro e vejo o Fulano na meso do Lolô Bernardes e do Aloísio Sales. Aproximo-me. Abraço Lolô e Aloísio. O Fulano já está de pé. Pede licença e me leva. Sinto a sua angústia. Finge naturalidade: - "Que papelão do Fluminense!" Paro, ressentido: - "Você me chamou para falar contra o Fluminense?"" 

5. Disse: - "Estou brincando." Ocupamos uma mesa dos fundos. Vem o garçom. Antes de escolher, digo: "Traz Lindóia." O garçom inclinou-se para o Fulano: - "O senhor toma alguma coisa?" Vacila: - "Lindóia também." Mas logo muda de opinião: - Traz uísque." Quando o outro sai, meu amigo segura o meu braço: - "A situação lá em casa não está boa." Pausa. Pergunto: - "Mas o que há?" Suspira: - "Minha mulher está me tratando como nunca me tratou.". Não entendo: - "Mau?" Geme: - "Bem."

E continua até o 13. 



terça-feira, 29 de julho de 2014

Caio

Deste livro aqui:



Obsessiva número 5

Faz tanto tempo, já
e não, eu não esqueço.
Tomadas providências melancólicas
tipo beber muito
   ir ao cinema sem parar
   televisão bares festinhas
   drogas variadas
   cartas & telefonemas
   ou não. E nada.

Somados aos dos pés, dos dedos
das mãos não seriam suficientes
para contar os meses todos.
Tantos, deus, e tantas
mas tantas, tantas fiz
(como diria Ana Cristina, a bela)
e eu - mas o que seria esse eu depois de tudo?
e isso é outro papo - enfim:

eu não esqueço

aquele esboço de felicidade,
inesperados tropeços no real. E teu cheiro
de repente, outra vez, no meio de maio,
visuais rápidos na esquina,  no escuro
teu rosto transformado em outros.
Arsênico, cumulativa: a memória
dum quase possível me envenenando
insidiosa e lenta
como num romance inglês.

Até hoje - até quando?

Caio - maio de 1982.

A Ana Cristina César declamando o que o Caio fala está aqui: vejam que coisa linda. De nada.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sempre "Grande Sertão"


Meu livro de sempre. Uma das minhas melhores memórias da faculdade.


"Mas minha mão, por si, pegou a mão de Diadorim, eu nem virei a cara, aquela mão é que merecia todo entendimento. Mão assim apartada de tudo, nela um suave de ser era que me pertencia, um calor, a coisa macia somente. São as palavras? Mas aí espiei para Diadorim, e ele despertou do que tinha se esquecido, deixado, de sua mão, que ele retirou da minha outra vez, quase num repelão de repugno. E ele estava sombrio, os olhos riscados, sombrio em sarro de velhas raivas, descabelado de vento. Demediu minha idéia: o ódio - é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente". 

Esta é a minha edição - página 316.